Amigos do Fingidor

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

A Vila
Inácio Oliveira

Nunca pensei que aquilo fosse acabar, aqui tudo estava impregnado de eternidade como se o tempo não ousasse nos tocar. Os dias eram lentos e arrastados, uma tarde de não acabar nunca mais. A terra era boa conosco, generosa como toda boa mãe e tudo estava certo.

Ao longo das casas que formavam a vila, o sol arrastava sua luz cansada até a outra margem do rio, trazendo a noite, e todos se quedavam no descansar daquela vida sofrida e boa que era a vida na vila.

Para o mundo a vila não existia; para os homens da vila a vila era o mundo. Além do horizonte tudo era desconhecido e nós vivíamos num tempo sem data.

Ninguém sabe ao certo quando tudo começou. Havia noites difíceis de terminar. Quando seu Euleotério morreu todo mundo ficou se sentindo um pouco órfão. Seu Euleotério era o homem mais velho da vila, talvez por isso ninguém se surpreendeu muito com a morte dele.

Depois os outros foram morrendo também. Primeiro a mulher, depois os filhos e por último os netos, os animais todos, os cães que guardavam o portão, os cavalos, as galinhas, e até as plantas e as árvores ao redor, tudo foi morrendo daquela forma tão triste, que a casa deles parecia tomada de uma presença invisível que aos poucos se espalharia por toda a vila.

Logo as outras famílias foram morrendo também, uma a uma, ninguém sabia ao certo porque as pessoas estavam morrendo assim daquele jeito. Militão, que ainda estava vivo, disse que Deus havia esquecido da gente.

As famílias enterravam seus mortos. O último era enterrado pelos vizinhos que iriam morrer logo em seguida, eles já sabiam. Nem todos puderam ser enterrados: os corpos em putrefação ficaram no meio da vila, as casas vazias, como se esperando seus donos voltarem. Éramos os esquecidos de Deus, eu pensei quando vi os últimos morrerem.

Tudo que foi a vila agora são apenas ruínas, uma clareira no meio da floresta. A vida que era tanta se afasta lentamente e a clareira onde tudo morre só aumenta. A morte veio assim, sem pressa, sem pedir licença e ninguém pôde fazer nada.

Quando Emiliana e Eduardo morreram eu quis morrer logo em seguida. Não sei como pude sobreviver ainda. Um homem que vê todas as pessoas que ama morrerem não aguenta. Pensei em reconstruir a vila, buscar nesta imensidão uma presença humana de gente viva, mas que pode um homem sozinho contra a morte?

Sei que logo em breve morrerei também. O que devia ser um consolo, em vista da minha condição, é um medo terrível esse de saber que vou morrer a qualquer momento; no entanto, eu queria era já estar morto, não posso mais viver assim entre o nada e o nada.

O que eu queria mesmo era ter morrido enquanto todos ainda estavam aqui para eles chorarem por mim, assim como eu chorei por eles, morrer assim de repente, sem esperar nem saber disso, morrer como alguém que vai dormir e não sonha nem acorda mais, tranquilo, descansado dessa vida, sem susto, sem nem saber que havia morrido, porque morrer é isso, é nem saber que se morreu.

O que eu não quero é essa morte anunciada, um homem com prazo de validade, que coisa mais horrível pode haver?

A morte vem destruindo tudo, consumindo tudo, sem pressa, inexorável, como só mesmo a morte o é, ela sobe lentamente pelos meus pés e não há ninguém aqui que me dê a mão, que se compadeça de mim, que chore este momento meu me dando a ilusão de uma vida justificada.

O mundo inteiro ignora que um homem, que sou eu, morre sozinho num canto esquecido, mas mesmo assim, neste aniquilamento vazio e desvalido, o universo sou eu, em expansão até, com estrelas e tudo.