Allison Leão*
O desafio era basicamente este: escrever sobre uma antologia com mais de duzentos anos entre o primeiro e o último poeta. O que haveria de comum entre todos os poetas além do fato de serem antológicos e terem feito, ao menos em certo momento, literatura no Amazonas?, quis saber minha regular cabeça de crítico literário.
Volto à leitura. Folheio o texto ainda não encadernado que me fora entregue pelo Tenório Telles dias antes. E nada. Não sei bem por que, resolvi espalhar pelo chão do quarto as inúmeras folhas soltas. Olho para os nomes, os títulos dos poemas, as datas de nascimento. Como um detetive, estou tentando compor com essas páginas um mosaico de um crime. Que mesmo crime terão cometido todos esses autores e autoras? Ou terão sido vítimas? Se forem mesmo vítimas, muitos – inclusive vários que já partiram – não chegaram a ser mortos, porque, dispostas as páginas no chão, rodeando-me, todos me olhavam vivíssimos e desafiadores como a Esfinge.
Uma moça é quem começa. Dança, violenta e branca, à minha frente. Eu sei que as sereias cantam e assim nos seduzem, mas ela dança, como também, em vez de cantar, dançam em alguns poemas as palavras – afoitas, ofegantes. Uma mulher de 19 anos com seu sangue de sol e sua alma de bruma. Mas não me conta segredo algum. Não duvido, inclusive, que se eu der bobeira ela me leva para o fundo do mar, onde os segredos ainda são mais obscuros.
Ali próximo, em outras páginas, um grupo de cavalheiros observa a cena. Pigarreando ainda alguns pudores, Quintino Cunha me chama a atenção, pois vai declamar seu "Encontro das águas". Estufa o peito e: "Vê bem, Maria, aqui se cruzam...". Há uma fila formada para as seguintes declamações: Álvaro Maia, Américo Antony e Thiago de Mello são os próximos.
Alheias ao jogral estão certas figuras, nas sombras. Está cada qual num canto, e assim parecem querer ficar. Xavier de Carvalho, Theodoro Rodrigues, Antísthenes Pinto, L. Ruas. Mas logo, dessas sombras, nos quatro cantos do meu quarto, avança uma faminta escuridão. E por um instante me parece que vai engolir a claridade nascida na boca dos poetas que louvam a magnitude de florestas e de rios. Mas em seguida atinge a fronteira com a claridade, e nesse ponto faíscam os atritos desse embate.
As faíscas devem ter alterado minha vista, porque agora são muitas figuras que passeiam entre as páginas. Uns, vestidos de terno e gravata, revisam seus poemas; outros os fazem nus. Umas mulheres começam a parir palavras; outras preferem pingá-las delicadamente sobre as folhas de papel, como gotas. Poetas bebem, poetas fumam, poetas riem, poetas choram. No meio dessa confusão, Luiz Bacellar abre uma caixa de fósforos. Mas de lá saem apenas – gloriosos em sua singeleza – palitos. E eu queria outra Lux.
Talvez meu caminho esteja incorreto. As antologias parecem querer agrupar, reunir. Mas estas folhas soltas, espalhadas no chão do meu quarto, dão a impressão do que talvez seja a literatura de qualquer lugar do mundo: diversa. Falamos de escritores amazonenses ou que tenham sua vida marcada por uma passagem nesta terra. No entanto, as marcas podem ser muitas. Sim, talvez as antologias reúnam, mas aqui leio a reunião da variedade. A diferença é o que lhes dá em comum. Os poetas do ciclo da borracha, os do Clube da Madrugada, os que o leitor ainda pode encontrar pelos bares da cidade, os que agora só se encontram nos livros, os da noite, os do dia, os cosmopolitas e os provincianos. E é claro, os inclassificáveis, muitas vezes cambiantes entre um desses tipos e outros – estão todos nessas páginas. Sentir essa diversidade significa entrever a própria diversidade cultural do Amazonas – desde as brenhas do mato de Alcides Werk até as muitas cidades de Aldisio Filgueiras. Ponto para a antologia, que assim pode ajudar a revelar o que já está bem na nossa cara: a pluralidade – e não a unidade – que compõe nossa literatura e nossa cultura. Isso mesmo, não há uma literatura amazonense; há umas.
Acompanhamos, assim, através do complexo discurso literário poético, as variações da própria história do Amazonas: a colonização, a Província, a euforia gomífera, os processos de modernização, as resistências do arcaico, a contemporaneidade. Mas a sutileza da literatura requer dessa leitura histórica um esforço interpretativo, porque em sua esmagadora maioria os poemas não falam diretamente desses processos. No entanto, o lugar media a relação entre os poetas e seu tempo. Da mesma maneira que o tempo interfere na relação entre o poeta e seu lugar. Assim, cada poeta desta antologia é um signo do tempo e do lugar amazonenses.
E os signos não morrem: transmutam-se. Por isso, esses mais de duzentos anos de poesia vão como que se reescrevendo, à medida que lemos o tempo passando nos poemas. E assim, não há morte; há simplesmente reprocessamento da matéria de poesia. Ler, por exemplo, a "teoria" poética de Zemaria Pinto implica reler as formas clássicas dos primeiros poetas no Amazonas. Assim como ler as revisitações formais de Luiz Bacellar significa sincronizar tempo, forma e conteúdos poéticos.
Um engano que cometi ao início desta leitura foi achar que as antologias salvam os escritores, que elas os recuperam do esquecimento dos anos. Não tenho dúvida de que de certa forma isso ocorra – quando foi, por exemplo, a última vez que você leu "Monja", de Theodoro Rodrigues? Mas, ao recuperar traços da obra de cada poeta, as antologias descartam-lhes outros. Ossos de ofício de antologia. Resta esperar que cada escritor, com seu punhado de poemas nas mãos, seduza o leitor para o convite de uma maior intimidade. Como num baile, depois desta dança/leitura, o leitor lembrará de alguns rostos/vozes. E vai querer reencontrá-los.
*Allison Leão, professor da UEA, tem mestrado em Cultura Amazônica, pela UFAM, e doutorado em Literatura, pela UFMG. Contista, é autor de Jardim de silêncios.