Zemaria Pinto
A descrição
e o ambiente amazônico
Sob a concha da panacarica
apresenta, em quase todos os contos, um ponto em comum: a descrição do ambiente
amazônico, da natureza, embora tal abordagem subordine, por vezes, a estrutura
do conto, já que a descrição não é, propriamente, característica dessa
modalidade narrativa.
Esses contos, conforme classificamos
anteriormente, que tratam dos aspectos típicos, ou seja, dos usos e costumes
regionais, podem ser chamados de regionalistas.
Vejamos alguns exemplos.
No conto que dá título ao livro, assim
começa o narrador:
A
“Ituí” singrava as águas mansas do Solimões, naquela tarde, sem ocorrência de
vento. Por isso o sol chegava mais ardente, mais cáustico, insuportável quase.
Sob
as coberturas improvisadas das canoas maiores que a lancha arrastava
penosamente, agrupavam-se integrantes do naipe feminino, para conversas
infindáveis.
Os
homens, estes, pulando de canoa em canoa iam reunir-se embaixo das toldas de
pequenos batelões, para a satisfação do vício de enfadonhas partidas de dominó.
No conto seguinte, A última pesca, o
narrador utiliza-se de quase metade do conto para descrever o ambiente, a
pesca. Ilustremos com o segundo parágrafo:
Amanhecia.
O sol de verão banhava de luz a extensa lâmina líquida que se descortinava a perder
de vista e tingia de verde o cobertor denso da galhada exuberante das muitas e
variadas espécies vegetais que compunham o igapó. Remando, mansamente, para não
furar o silêncio da manhã que despertava, vestida da magia de cores vivas e
para não espantar os peixes que iniciavam a faina de todos os dias (a busca de
alimentos), dirigiu-se a uma enseada e aproou a frágil montaria numa vaga entre
os troncos nodosos de imensas árvores varzeanas banhadas de enchente.
Somente a partir da metade do quarto parágrafo
é que trata do personagem em si, seus pensamentos:
(...)
O tucunaré riscou a água, na ânsia de fugir, mas o pescador, experimentado,
logo o dominou. Por momentos admirou o belo exemplar. Sorrindo devolveu-o a
água. Naquele dia não queria tucunaré, seu objetivo era tambaqui. Afastou-se e foi fazer hora à sombra de
frondosa mungubeira. E ali, em compasso de espera, deu asas à imaginação,
voltando ao passado que, afinal, não estava tão distante.
São apenas exemplos. O leitor pode exercitar-se anotando
outras recorrências da ambientação amazônica, predominante em todo o livro.
Língua,
linguagem e estilo
A linguagem do texto em prosa deve primar
pela objetividade, por isso o narrador deve utilizar, principalmente, a
linguagem denotativa (que é a linguagem encontrada nos dicionários). Apesar
disso, temos como característica da verdadeira obra literária, mesmo em
prosa, a utilização da linguagem
figurada, o emprego de metáforas (e assim poderemos enquadrá-la como essencialmente artística).
No livro em estudo, a linguagem metafórica
é uma constante, por vezes sutilmente apresentada, e integrando quase sempre os
personagens à natureza, como nos contos trabalhados a seguir.
Morte – Em A última pesca, a morte
da esposa traidora e de seu amante é apenas sugerida:
Ao
passar pelo quarto percebeu que a porta estava entreaberta. Olhou com
indiferença. Viu um monte de lençóis brancos. Engraçado, não se lembrava de
possuir lençóis brancos com aqueles florões vermelhos, grandes como manchas...
Mais adiante, a morte é apresentada como a
Iara, uma Iara com o rosto da esposa assassinada:
Ah!
Era a Regina, sim, e continuava a chamá-lo com gestos de paz e sorrisos de
amizade. Eugênio acenou-lhe, sorrindo também, desejoso do reencontro.
Ergueu-se. Firmou-se no banco da canoa,
e com um grito de satisfação atirou-se nos braços de Regina, no meio da
estranha piscina, com jeitos de eternidade.
A água é seu túmulo, um instrumento da
morte.
Também em O delito da bondade, a morte apresenta face distinta. Aqui tem
asas, numa clara referência romântica de
liberdade, um voo livre:
(...)
os pássaros iniciaram a festa da colheita fácil, sanhaçus, pipiras e sabiás à
frente; os papagaios voltaram em bandos... E, de repente, o velho Zeca se
sentiu entre eles. E voou, como seu pai, o velho Santos o fizera, anos antes,
para os confins da eternidade.
Na
narrativa que tem o título No igarapé, o riacho que testemunha a violação da jovem Judite, assim como ela,
torna-se maculado, e o lugar, outrora cheio de vida, transforma-se em desolação.
A constatação é da própria Judite:
Ela,
também, murchara. O frescor da juventude atiçado pela força telúrica emanada
daquele conjunto nativo, deixara de alimentar-se dos fluidos secretos da
natureza palpitante. E os pés descalços que outrora se banhavam de santo
orvalho fresco, durante as caminhadas matinais, cobriam-se agora de cinza
escura e feia das queimadas repetidas.
Ora, se em A última pesca a água é um instrumento da morte, o
túmulo do pescador, também em No igarapé é elemento
de morte, mas aqui aproveitada em um de seus melhores símbolos: a morte em
plena juventude e beleza. E é a ingênua Judite que morre, maculada pelo algoz,
e só ressurge ao conceder o perdão ao violador.