Apresentação dos livros Só a Educação Transforma os Povos, de Araújo Lima, e Em Memória de Paulo Jacob, de Armando Menezes
Zemaria Pinto*
Começo por agradecer a generosidade de uma das poucas pessoas que conheço que ainda não perderam essa qualidade: o meu irmão Tenório Telles. Eu, que sempre fiz minhas as suas palavras, tenho-o agora falando por mim. Estou certo de que esta breve alocução não provocará nenhum constrangimento no Tenório, pois estaremos, no plural, falando de um livro de Araújo Lima, sobre o qual ele escreveu apaixonada resenha, e de um outro livro do nosso irmão querido Armando de Menezes. Por intermédio da Editora Valer, o Tenório é co-responsável por essas edições, que a nossa Academia dá hoje à luz.
Pois nos reunimos, nesta noite de agosto, para entregar ao povo do Amazonas, aqui representado por essa digna plateia, dois trabalhos produzidos, podemos assim dizer, dentro da Academia Amazonense de Letras: Só a Educação Transforma os Povos, de Araújo Lima, fundador da Cadeira Nº 17 e patrono da Cadeira Nº 25, publicado pela primeira vez há mais de 70 anos, e Em Memória de Paulo Jacob, de Armando de Menezes, titular da Cadeira Nº 30, inédito. Busco mostrar a vocês, de modo breve, o que os espera quando da leitura desses trabalhos.
Só a Educação Transforma os Povos
Escrito em 1932 e publicado no ano seguinte, Só a Educação Transforma os Povos é um livro espantoso pela sua atualidade. Apesar de todos os avanços, a educação básica, até há pouco tempo chamada fundamental, outrora primária, continua sendo, senão o maior problema, um dos grandes problemas deste país. O quadro de setenta anos atrás era muito mais dramático, pois o Estado não se responsabilizava com a educação. Mudou a qualidade do problema, mas não mudou o problema.
Influenciado pelas ideias deterministas e positivistas de Taine e de Comte, Araújo Lima acreditava que o “aperfeiçoamento étnico e social” só seria possível pela via da educação. Modificando o meio, modificava-se a raça. Seu paradigma era o Japão, que, em 60 anos, “transformou-se em uma das grandes potências, emergindo de um feudalismo secular.” Os mais velhos, que não tiverem a devida intimidade com a história do Japão, não compreenderão a profundidade dessa frase. Mas os jovens, atentos às leituras dos moderníssimos mangás, sabem que, até a primeira metade do século XIX, o Japão vivia um período de total obscurantismo, correspondente à alta Idade Média européia. Numa leitura sociológica, os samurais são metáforas do atraso e não do heroísmo do povo japonês, como facilmente se costuma confundir.
Araújo Lima toma Rui Barbosa como ponto de partida para engendrar o seu raciocínio pela causa do ensino dito então primário, mas referido por nós como básico, usando-se a nomenclatura atual. Pois bem, o grande jurista, em 1882, 50 anos antes de Araújo Lima, traçou o plano da instrução básica nacional. O parlamento ignorou o erudito baiano. Fazendo uma analogia com os tempos atuais, podemos dizer que Rui Barbosa, a despeito de ser um intelectual de nomeada e por todos respeitado, perdia a luta política, quase sempre vencida pelos medíocres, que, não tendo vontade própria, deixam-se manipular pelo poder maior das forças inominadas, manipulando, numa cadeia maléfica, a debilitada vontade popular.
Amazônida, Araújo Lima bradava: “é este um país de desertos e de latifúndios.” Ele sabia que “a rarefação demográfica era o mais grave, o mais pesado obstáculo ao alastramento do ensino, por esse Brasil adentro, pelos sertões longínquos.” Com a tecnologia de hoje, meu caro Araújo Lima, não teríamos porque reeditar seu livro. Mas o fazemos porque, a despeito de todo o avanço tecnológico, o atraso mental persiste. E, o que é pior, na qualidade do ensino.
E esse não é um problema do governo L ou do governo F, como não foi do governo I, do C, ou do S. A chave para a solução do problema, o nosso querido Araújo Lima o sabia, era a conscientização popular, capaz de criar uma “mentalidade nova, propícia aos empreendimentos do ensino básico, organizando-se uma propaganda intensiva, tenaz, sugestiva, por todos os meios de publicidade e de divulgação oral; ou seja, pelo jornal, pela revista, pelo livro, pelo rádio, pelo cartaz, pelos avulsos, pelo cinema, pela conferência, pelo discurso, pelo comício, pela pregação em qualquer tribuna.” Para atualizar fala tão atual, só falta acrescentar “pela televisão, pela Internet e pelo telefone celular”...
Araújo Lima escreveu há mais de setenta anos um libelo que, para ser vibrado hoje, só precisaria de alguns poucos retoques. Porque, apesar de todos os avanços, o problema do ensino básico continua a ser tratado sem o merecido respeito.
Em Memória de Paulo Jacob
Não fosse por um claro anacronismo, diria que Sérgio Buarque de Holanda, ao elaborar a sua teoria do “homem cordial”, teria tido como modelo o querido Armando de Menezes. Armando é só coração. E por aí se desenvolve a principal vertente da sua literatura. Porque o memorialista é antes de tudo um amoroso. Não, eu não disse apaixonado. A paixão é violenta e por vezes cruel. Se o amor afasta-se do ódio por uma linha tênue, essa linha é a paixão. É a paixão que separa o amor do ódio, o bem do mal. Para o proustiano Pedro Nava, poeta da memória, “na reconstituição de memórias, nós levamos para o passado um lastro de presente que corrompe a nossa lembrança. Não sou historiador, sou memorialista. Trato de fatos que tenho a liberdade de interpretar, porque fui participante deles.”[1] Armando ergueu o edifício de sua obra em torno de três pilares: a lembrança, o amor e a simplicidade. A lembrança como matéria de trabalho. O amor como base da composição. E a simplicidade como expressão.
Conheci o Armando há pouco mais de um ano. Mas, ele não sabe, há mais de 20 ouço o Thiago falar dele. Eu, que sou por natureza retraído, só depois de conhecer o Armando compreendi a frase que o querido Thiago repete sempre: “a amizade é a mais alta forma de amor.”
Não faz muito tempo, o nosso presidente Elson Farias registrou, a respeito do Armando, que, entre as “inúmeras artes em que é mestre o nosso companheiro de Academia, a arte da amizade é a que ele exerce com a maior destreza e a mais clara sabedoria.”
Lembrança, amor, simplicidade. A matéria de trabalho. A base da composição. A expressão. Essa equação fica muito evidente – e sua comprovação, mais fácil – no livro que Armando nos entrega nesta noite: Em Memória de Paulo Jacob. A começar pelo título, objetivo, direto, simples, mencionando a memória como fio condutor: memória de um amigo, um grande amigo, como constatamos na leitura, que atravessara à outra margem do grande rio. Estas pouco mais de 50 páginas encerram um significado inestimável: uma homenagem póstuma, um ritual marcado, paradoxalmente, pela alegria que o amigo ausente provocava em vida, pela lembrança dos seus feitos e, em especial neste caso, pela lembrança de sua obra. E que obra, senhores! Pois estamos tratando de Paulo Jacob, um dos grandes romancistas brasileiros da segunda metade do século passado.
Armando de Menezes faz o elogio do amigo Paulo Jacob sem jamais cair na tentação das lembranças piegas. Como grande memorialista que é, dá-nos a mão e nos conduz desde a bucólica Parintins dos anos 30, ambos meninos, até o tambaqui dos sábados, no alvorecer do novo século na metrópole em que Manaus se transformou a fórceps, tempo que perdurou a amizade dos dois, sempre enfatizando o caráter observador de exímio criador de Paulo Jacob, capaz de identificar na fala do caboclo verdadeiros poemas, como no delicioso caso do rapaz que procurou o eminente juiz de direito para denunciar que alguém queria lhe tomar as terras, na qual trabalhava há tanto, justificando-se: “pois já tenho até limoeiro solfejando flores, dotô”. A poesia daquela fala tão simples e tão poética não escapou ao juiz nem ao romancista.
Armando de Menezes, com uma insuspeita veia de crítico literário, desvenda o processo criador de Paulo Jacob, cuja vivência no interior do Estado foi fundamental para forjar universo tão peculiar. Onde alguns vêem dificuldade na leitura dos romances de Paulo Jacob, Armando observa que “seus romances baseiam-se em histórias e lendas de origem no meio hinterlandino amazônico, num linguajar simples, igual ao do nosso caboclo, com o objetivo maior de projetar sempre as figuras do pescador, do caçador, do seringueiro, do agricultor, do artesão e, igualmente, da mulher, sem a qual esses bravos e heróicos homens nada conquistariam na vida.”
Ocupante da Cadeira nº 7 desta veneranda Academia Amazonense de Letras, que tem por patrono o poeta Maranhão Sobrinho, Paulo Jacob sucedeu ao lendário Álvaro Maia. Este livro originou-se da homenagem póstuma que a Academia prestou ao romancista então recém-falecido. O livro, que registra não só a conferência de Armando, como também o debate que se lhe seguiu, e muito especialmente as intervenções da Senhora Marilda Jacob, não é apenas a recuperação da memória do ilustre romancista, mas a cristalização de uma figura ímpar, que, já não estando entre nós, vive em nós, por seus livros imortais, e também agora, por esse ensaio-homenagem que lhe faz o amigo Armando.
Senhor Presidente, senhoras e senhores acadêmicos, senhoras e senhores convidados, crianças: nos meus quase cinquentanos, conheci poucas pessoas tão afáveis e sedutoras quanto esse jovem quase octogenário Armando de Menezes. Não seria exagero de minha parte – eu, que sou tão pouco afável – dizer que quando eu crescer, eu quero ser Armando de Menezes...
Muito Obrigado!
[1] Entrevista à revista Veja – edição de 17/04/74.
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*Por estar o autor ausente da cidade, o texto foi lido pelo acadêmico Tenório Telles, numa noite de agosto de 2005, na solenidade de lançamento dos livros.