Amigos do Fingidor

domingo, 1 de novembro de 2009

Letícia
I
Allison Leão


A namorada de meu irmão mais velho. Seu espectro já nos flutua há muito tempo. Para José Américo, meu segundo irmão, ela é um belo sorriso, embora comedido. A aparição de Letícia, para ele, foi esse dá-e-tira. Mas ela estava lá, em presença, disso ele não tem dúvida: aquela noite foi um chute na nossa miséria: mesmo os músculos do seu corpo de bailarina acordam qualquer delicadeza em nossos olhos, foi o que entendi do que disse meu irmão José Américo.

Será de fato assim Letícia?

Esqueço. Penso na descrição que meu terceiro irmão José Luiz faz dela. A Letícia de José Luiz tem a inconsistência de um nada feito pedra fechada. Se para José Américo ela existe na condição de maravilha, de movimento e curva e brilho, para José Luiz ela tem os olhos como um lance de vista a ponto nenhum. É bem possível que houvesse naquela noite uma vontade imensa de saber Letícia por algum contorno, mas só havia essa vontade, e vontade é outro nome para ausência – assim me pareceram as palavras de José Luiz.


Quando ainda morávamos em Tabatinga, ela havia sido o amor-criança de José, meu primeiro irmão. Até aí, José Américo e José Luiz concordavam em relação a ela: isso porque não tinham nenhuma opinião sobre a moça. Concordavam no desconhecê-la. 14 e 13 anos tinham, respectivamente, José Américo e José Luiz. E parece que Letícia era tão qualquer coisa quanto qualquer uma das cunhãs do lugar. (Eles só a teriam notado quando ela dançou uma noite inteira com nosso irmão, na Fiesta de la Confraternidad. Foi quando o casal começou o namoro. Letícia estava com José – que por si só já era bonito no dançar –, dançava melhor que qualquer uma e quando rodopiava eram três quartos de pernas à mostra: não tinha como ignorar.) É que, antes disso, José Américo e José Luiz já tinham aprendido nos livros de História a ver cara de índio tudo igual – embora em casa, no cada-qual-com-seu-focinho, confundissem os aprendidos. Às vezes pediam dinheiro a turistas, juntos, apenas 10 meses e talvez 4cm separando um do outro. Diziam-se gêmeos. Os turistas franziam o cenho, olhavam, desolhavam, tresolhavam. Indiozinhos gêmeos: valia de fato um tostão. Quando nosso irmão lhes descobriu a esperteza, aplicou neles uma surra roxa. E depois que a carne dos curumins acalmou-se, nunca mais foram parecidos um com o outro. Letícia admoestou meu irmão: aquilo era um exagero de correção. Fizesse noves fora, veria que era nada. Mas José devia ter lá suas razões. Eu era muito novo, o caçula da casa. Não sei dos motivos dele.

Letícia, dizia eu. Toda a alegria e toda a tristeza de meu irmão nela contidas. Os namorados tinham lá suas idéias-juntas. José queria descer o Solimões, viajar para Manaus. Ia fazer “curso grande para professor”, dizia que. Em casa e na vizinhança ele já era autoridade escolar. Havia feito viagens longas (até além de umas montanhas de que eu só ouvira falar) e tinha livros na cabeça. Foi ele quem me ensinou a ler e a escrever – e também a todos de minha idade naquelas redondezas. Letícia, porém, era outra terra: não tinha outro sonho senão que meu irmão fosse seu. Como isso já acontecia, Letícia não tinha sonhos. E no entanto foi nesse salto vazio da ausência de sonhos que Letícia voou para longe.

No final do primeiro ano de namoro, ela dançava novamente com meu irmão, na Confraternidad. As pernas ainda mais mulher, Letícia fora escolhida Rainha das Três Fronteiras. Naquele ano, como de costume, visitantes tinham ido ver como o povo da fronteira é diferente. Para nós, era oportunidade de mais uma vez saber como os visitantes eram esquisitos. Talvez eles também fossem de alguma fronteira, longe da nossa. Iam lá para ver tradições tikunas ao vivo. Danças – que os missionários nos ensaiavam. Mas a maior parte de nós não era ticuna desde o nascimento. E se não o éramos, brasileiros ou colombianos ou peruanos também não sei se tanto. Ou será que alguém viajaria a tão longe para ver outro de si? Viajaria? Para nós, era corriqueiro atravessar do Brasil à Colômbia para comprar pão ou cigarro. Uns enchiam a cara no Peru e iam ter ressaca na Colômbia. Uma troca de olhares na Colômbia podia acabar numa cama no Brasil. Ora, quando flutuávamos em nossas canoas, nas águas entre um país e outro, não víamos barreira nenhuma a conter o fluxo do rio.

Nossa familiaridade com a fronteira dos três países e estranheza aos países ficava mais evidente quando turistas do distante Peru, da Colômbia longínqua e do Brasil que nem imaginávamos haver visitavam nossas festas. Olhávamo-nos, nós e eles, com olhar tão estrangeiro que nos sentíamos atravessar pelo desconhecimento mútuo. E naquele ano de 1990 mais ainda, pois alguns deles nos olhavam com o olho do olho de vidro das filmadoras.

Uma equipe da BBC fazia um documentário sobre festas populares no Alto Solimões. Quando as lentes chegaram a Letícia, apaixonaram-se. Demoraram-se nela, Rainha, quadro inteiro, um bom pedaço de tempo. E Letícia correu mundo, primeiro assim, dentro da tela da TV. Depois foi embora com as próprias lindas pernas. A convite do Ballet del Teatro Municipal de Santiago, foi estudar no Chile. Iam ser apenas três meses, “además, una oportunidad como esta no se puede perder”, pensou meu irmão, que sempre foi, afinal de contas, uma pessoa bem esclarecida.

Letícia, de fato, retornou. Mas apenas para entregar a José os cravos-de-defuntos da despedida. “¿Qué?”, desesperou-se, quis compreender meu agora nada esclarecido irmão. E Letícia contou – a um metro e meio de distância de José, com menos de meio metro de sílabas.


Santiago estava reencontrando dias claros e democráticos, sem sequer saber o que estava dizendo, assim dizia Letícia, pois assim ela ouvira. A Plaza de Armas já não tinha tanto peso no nome como poderia ter tido nos anos anteriores. Lá, viu toda a reunião da novidade aos seus olhos: vendedores de livros, malabaristas, vagabundos, pedintes, novos poetas. E soldados ainda vigiando a liberdade e a democracia. Três pessoas juntas, dizia-se, não eram mais encaradas como ameaça à ordem. Letícia não sabia nada sobre a história chilena. Caminhou certamente por ruas em que nalgum distante ano instalaram-se barricadas, ou por outras, onde muitos haviam tombado. Mas Letícia não deu fé do passado sob seus pés. O passado sob os pés; o presente à altura dos olhos: havia sempre as luzes dos importados abarrotando prateleiras, sons de brinquedos ou eletroeletrônicos que falavam inglês, cuja incompreensão tornava-os ainda mais atraentes. Seus companheiros na escola de dança, muitos vindo de outros países da América Latina, assemelhavam-se a ela na ignorância e na fascinação. E os amigos chilenos repetiam empolgações aos visitantes, acolhidos pela caridade que pode haver entre os pobres.

A Plaza de Armas era excelente para entusiasmos. Foi lá que Letícia conheceu Johnny Hernández, um não sei quem que fazia não sei quê. Sei que conquistava. Johnny foi ligeiro na investida. Ao som de um flautim que alguém por perto tocava, já chegou chegando. Ensinou à bailarina como é que se baila. A primeira dança etérea de Letícia, seus pés acarinhando o ar. E, com um olhar inapelável, liquidou: “¿Es verdad o solamente un producto de mi locura?”


Locura foi meu irmão. Mas qual loucura? Viu Letícia sair da nossa porta para a carreira internacional sem chamá-la de volta. Não era o grande amor da sua vida? Era. Mas José tinha seus modos. Dentro dele crescia, em silêncio, um ricochete desse grande amor. E crescia igualmente grande, e movimentado, como a dança com Letícia na Fiesta de la Confraternidad. Mas muito dentro. Ribombava no coração magoado, sacudia-se no estômago, estremecia nos intestinos e explodia na privada. Seu jeito de desabafar. Meu irmão gestante daquele amor, mas ao avesso – ele, José, dentro da cápsula –, desde que viu Letícia ir embora.


Alguns meses ainda permanecemos em Tabatinga, a vida passando como rio, água após água. Meus outros irmãos quiseram perguntar sobre qualquer andamento, mas José era de um silêncio conservado. Quando ia cozinhar, demorava-se catando o feijão, encalacrado. Fazia um monte com os brocados, separava os gorgulhos, as pedrinhas e todo tipo de fiapos e sujeiras, e outro com os grãos sadios, de lisa perfeição. Depois, com o indicador, conferia ambos os montes, catava tudo de novo. E foi assim, grão por grão, que um dia, um pouco antes de irmos dormir, ele virou a panela dos pensamentos sobre nós: “¡Mañana!” No dia seguinte, estávamos rumo a Manaus.

Daí em diante, a vida passou no encompridamento dos dias. Quer dizer, no rasteiro de cada dia, separado dos outros, a vida tinha a morosidade de uma lagarta-de-fogo, tanto lenta quanto ardida. Às vezes, a vida dava uma volta sobre si mesma; olhava por cima do ombro, buscava o dia anterior e anteriores dias ao anterior. Não via muita coisa além do embaralho ancestral das lembranças de Tabatinga. Via ainda água, barco. Mas logo depois via uma cidade, gente espocando na nossa vista. A seguir, o asfalto quente, o ônibus lotado, o calor e os calos, a mão de José a me guiar, me perder e tornar a encontrar-me. Dias de um calor que vinha de fora, sim, mas também de um frio de olhos arregalados que me comia por dentro. E logo depois um calor que era só pele: vinha da terra seca onde erguemos nosso barraco, numa área devastada e tórrida, nos limites da cidade, sem uma árvore que esfriasse a monotonia escaldante da terra despelada; vinha da chapa de zinco quente da cobertura do 4x6.

No rolo dos anos, porém, foi outra velocidade. Dois anos após termos chegado a Manaus, José pôde dar início ao seu curso grande de professor. Grande mesmo: meu irmão foi estudar à noite no Instituto de Educação do Amazonas, e teve de cumprir dois anos além dos três ordinários do curso, por conta de ter sido reprovado duas vezes. O diploma – antes de encher o estômago e o intelecto das traças – chegou a ficar pendurado na parede, olhando lá do alto para nós, sem se mexer. Seis meses, e nada de José conseguir emprego em escola alguma. Apesar de o documento certificar-lhe o curso grande de professor, era para professor de criança pequena, e foi rejeitado em várias escolhinhas porque não pegava bem. Era o sotaque. Esse jeito de falar, enrolado na compreensão, escorregadio no som e no ritmo... Tudo isso pode atrapalhar as crianças em pleno aprendizado do nosso idioma português, disseram a ele. Que faça vestibular para Letras e se torne professor de espanhol... ou castelhano... o que vem a dar no mesmo, eu acho, alguém ainda buscou lhe encorajar. Fez o vestibular, por quatro vezes, sem sucesso. Tornou-se cobrador de ônibus. E de fato ninguém notava, ao vê-lo calado em tal função, que se tratava de alguém de fala tão esquisita. Acordava o dia antes de o dia se levantar. Quando partia para o trabalho, ainda dormíamos e talvez por isso pegou o costume de não se despedir toda vez que saía, mesmo em dias de folga. Se ele estava ou não em casa, era sempre difícil afirmar. Foi-se sumindo na massa de tempo das horas dos dias e de meses dos anos. Nunca chegou a ser professor de escola, mas manteve-se o chefe em casa. Fazia questão de deixar a comida quase pronta para nós, que já bem podíamos estar um palmo acima de sua autoridade. Devo a ele as primeiras páginas que li e estas que agora escrevo – aquelas porque foi ele meu primeiro professor, como já contei, e estas pelo inusitado dos recentes acontecimentos.

(conclui no próximo domingo)