Amigos do Fingidor

domingo, 8 de novembro de 2009

Letícia
II
Allison Leão


Há algumas semanas, num domingo, José chegou da feira. Quase como adivinhação de eventos singulares, teríamos uma iguaria no almoço: tucunaré cozido. Trouxe cebola, cheiro-verde e tomate numa sacola; dois peixes enrolados em folhas de jornal; e um tempero de esquisitices na cara, no qual se podia distinguir a vermelhidão do colorau e o calor da pimenta murupi. Entrou em casa calado, mas falante na expressão. Passou por nós deixando no ar o suspense. E o pitiú, é claro. Seguiu num mergulho eufórico até a cozinha. Fomos lá conferir. Urgente como quem passou muito tempo sem amar, ele abriu o pacote sobre a pia. Com a água da torneira, limpou uma manchete do jornal suja pelo sangue dos tucunarés. E pudemos ler por cima de seus ombros, entre um peixe e outro: “O Corpo de Baile do Teatro Amazonas tem agora em seu quadro uma verdadeira estrela: integrou-se ao grupo a mundialmente aplaudida bailarina Letícia etc. etc. etc.” Os tucunarés, de cara um pro outro, estavam boquiabertos.

Até então, Letícia fora uma caixa de não e nem, enterrada sob a tabatinga. Ordem dada na palavra do silêncio de José. Uma vez, no mormaço cambiante da programação televisiva, José, de repente, estacou num canal que passava uma apresentação de balé. Estávamos apenas os dois na sala, e depois de tantos anos nem atinei que poderia ser Letícia. Talvez nem fosse. Em meu irmão, a lembrança de Letícia talvez doesse mais que Letícia. Agora, uma coisa ou outra ressurgia no meio do domingo, erguia-se do sangue do pescado e dançava o passado na nossa cara. Felizmente, não havia retrato dela no jornal. Senão, quem sabe, até eu teria me apaixonado.


Na sua proposta de mixar tendências contemporâneas de dança com as tradições da cultura amazonense, o Corpo de Baile do Teatro Amazonas não sabia que misturava nisso as sobras do coração de José. Até a estréia de Letícia, duas semanas depois, ele era só a bebedeira da ansiedade. Coçou até o osso a contagem das horas e minutos. Errou troco no ônibus, para mais e para menos. Deu bom dia ao velho Mercedes Benz e ignorou o fiscal da linha. E nós, semanas a pão e ovo. José, que quase não falava desde a remota rejeição ao seu sotaque, agora cantava. Eu não conhecia aquelas canções. Muitas palavras nem as reconhecia. Uns instantes, elas resvalavam no Português, para logo em seguida se afundarem no castelhano e depois voltarem lá do fundo, num idioma desconhecido para mim – uma mistura que me confundia no entendimento, e mesmo assim me acalmava no ouvido. Como ele trouxera de Tabatinga aqueles cânticos, na bagagem? Mas estavam ali, anos de naftalina exalando na voz de meu irmão, a música saindo pela cumeeira e pelas frestas entre as tábuas de nossa casa. Umas vezes José abria as janelas, e a torrente sonora ficava maior. E a vizinhança comentava.

No dia da estréia de Letícia, meu irmão era uma presença que enchia a casa e a rua. Após o almoço, saiu para comprar flores de plástico e toalhinhas de tricô, com as quais enfeitou a TV, o aparelho de som, a geladeira e a mesa da cozinha. Lavou a louça que já estava limpa, varreu a casa, passou pano e depois encerou. Fora da casa, capinou o mato, retirou o lixo da rua numa distância de cinco casas a partir da nossa, para a direita e para a esquerda. Chegou a recolher um gato apodrecido que fora atropelado dois dias antes. Não solicitou nossa ajuda para nada. Não sei se ele sabia que eu acompanhava, curioso, suas ações sentimentais.

No começo da noite foi para o quarto, e pude ouvi-lo revirar os anos de amor e mágoa socados nalgum baú que ele escondesse embaixo da cama. Quando saiu de lá, vestia uma roupa tão antiga e patética, que só chamava menos atenção que o cabelo emplastado de gel fixador, o produto se confundindo com o suor na testa. Agora não sei. Talvez a roupa não fosse tão antiga assim. Quem sabe era meu irmão que estava antigo dentro daquela roupa. Estourando por entre os botões da camisa, não cabia direito nem a barriga nem a expectativa. Passou por mim sem parar. Não lhe interessava saber nem de aprovação nem de rechaço. Mas, antes que a porta se fechasse, pude ouvir: “¡Hasta luego!” E saiu.

Um pouco antes de o sono esmagar minha espera, fui à janela ver a noite. Não tinha luar. Nem brisa suave. Tampouco céu estrelado. Uma noite entre a rotina da anterior e o comum da seguinte. Quente. Até agora, inusitado apenas o hasta luego de meu irmão.

Imaginei José na Praça São Sebastião, em frente ao Teatro Amazonas, onde aconteceria o espetáculo de Letícia. Muita gente havia ido à praça aquela noite. “A cultura de portas abertas”, diziam as propagandas do governo. Espetáculos gratuitos. Quando José chega à esquina da 10 de Julho com a Eduardo Ribeiro, percebe que muita gente quer entrar por essa porta hoje à noite. Mas a porta que interessa ao meu irmão é outra. Ao se aproximar, José sente pequenas vibrações dentro do peito. Pensa que é o coração querendo chegar antes dele. Mas não demora a perceber que se trata da percussão da Amazonas Filarmônica.

Muito longe e elevado, o palco. José só pode acompanhar a magistral coreografia por um telão, e de tão próximo que ficou, quase pode tocar a tela. Mas ali, de pertinho, o que enxerga não é propriamente a cena; enxerga apenas os infinitos, diminutos e inconciliáveis pontos do telão. Depois, no entanto, entre com-licenças e empurrões, ganha certa distância e outra perspectiva, até poder encher os olhos com os corpos e a luz e a música. Se fosse eu, eu me perderia em distrações da cabeça: o que vêem os bailarinos e as bailarinas quando olham para o público, lá em baixo? uma cena inteira? pontos? E se descessem do palco e olhassem as pessoas rosto a rosto? Um homem que dorme. Uma criança que chora. Uma mulher que ri. Uma moça que boceja. Um cão que mija. Uma velha que aplaude fora do tempo. Mas a luz é para o palco, não para a platéia. Bailarinos e bailarinas dançam para uma ilusão feita de trevas. Se não o fosse, talvez descessem do palco e se assombrassem porque, enfim, não vendo, veriam meu rosto que não foi à praça, ficou em casa olhando para uma noite que nada prediz, pensando: que será de José e seu coração espremido pelos cotovelos do povo?

Nem a multidão nem o Corpo de Baile do Teatro Amazonas chegaram a ouvir que o peito de meu irmão atravessou o ritmo da Filarmônica quando enfim Letícia pisou no palco.


Caí no sono antes que se encerrasse o primeiro ato de meus pensamentos. De manhã, a ansiedade sacudiu minha rede. Na cozinha, encontrei José Luiz e José Américo. Sorviam o café frio e envelhecido pelo descuido de nosso irmão e mastigavam um debate sobre a natureza de Letícia. Absortos, nem me perceberam. Após ouvir um pouco das considerações que ambos faziam a respeito de Letícia, fui ao quarto de José e de passagem vi que as flores não haviam murchado. (Na hora, nem me toquei que eram de plástico.) Encontrei a cama cheia de todo o vazio que têm as camas arrumadas.

José Américo e José Luiz ainda não chegaram a uma conclusão sobre a natureza de Letícia. Sequer sobre sua presença em nossa casa após a estréia. José Américo diz que ela era uma luz que vinha em ondas visíveis. Que a graça de seu caminhar nem sabia o chão. José Luiz, entretanto, fala que, se viu algo naquela noite, era um buraco negro no meio da escuridão, uma massa densa e obscura. Apenas o silêncio continuado, uma ensurdecedora agulhada nos ouvidos.

Não vejo em mim tendência a fechar com qualquer um dos dois. Não tento analisar o que é Letícia. Talvez um dia o faça, como hoje fazem meus irmãos. Por ora, eu apenas sinto, como se sente uma fome. É algo assim que temos em comum, eu e meus três irmãos, em relação a essa mulher: fome. E como José Luiz e José Américo vivem de ser o contrário um do outro, não pretendo lhes dizer que há algo de muito parecido nas suas noções a respeito de Letícia, pois a fome é ao mesmo tempo, e poderosamente, uma presença e uma ausência.

Em seus debates meus divergentes irmãos não tocam no nome de José, que até onde eu sei não voltou para casa desde aquela noite. Isso foi há semanas. Mas, se ele estivesse aqui, não sei se faria muita diferença. Certamente não me contaria sobre seu encontro (ou desencontro) amoroso. Uma hora dessas, sairia para a rua sem dizer nada. Às vezes cogito que, nessas últimas semanas, ele tenha aparecido aqui em casa. Talvez tenha passado por mim, sem se fazer notar, como de costume. Talvez ainda more aqui, mais discreto que nunca. Mas não sei por que o silêncio de seu castelhano tem ecoado nas tábuas das paredes, retinido no zinco de nossa casa e reverberado na minha cabeça.