Amigos do Fingidor

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Medicina nas primeiras cidades: Egito e Mesopotâmia
João Bosco Botelho

Sitala, a deusa da varíola.

Com a consolidação do sedentarismo, nas margens dos rios piscosos, em torno de 5.000 anos, no Norte da África — Egito e Mesopotâmia — e algumas áreas da Ásia — Índia —, importantes modificações foram se processando nos antigos grupos nômades de caçadores-coletores. Entre as mais significativas, que mudariam para sempre as relações sociais humanas anteriores, se destacaram: a construção das elites dominantes laicas e religiosas, as práticas agrícolas, os ajustes e a defesa da territorialidade e os panteões.

Como fruto dessas mudanças, as sociedades francamente hierarquizadas acolheram regras destinadas às propriedades privadas, moldando os assentamentos mais duradouros.

Os aldeamentos foram substituídos pelas primeiras cidades e, no milênio seguinte, as civilizações regionais se consolidaram e assimilaram diferentes formas de poderes, predominando o teocrático e o mercantil-escravista. As guerras contínuas pela posse do território ofereciam escravos e terras, fortalecendo a escravidão e a propriedade privada.

Muitas mudanças provocadas pelo sedentarismo contribuíram para fortalecer a figura social do médico. De modo geral, os registros disponíveis, no Egito (Novo Império, XVIII a XX dinastias, 1.540 a 1.069 a.C.), Mesopotâmia (Babilônia, no período de Hammurabi, 1792-1750 a.C.) e Índia (Mohenjo-Daro, 2.500 a.C.), indicam que apesar de poucos, os médicos já eram personagens sociais reconhecidos e com nominação própria, instruídos na arte de curar por meio de remédios e cirurgias.

Os médicos dessas cidades sem um processo teórico que explicasse a saúde e a doença, apesar de terem iniciado a Medicina como uma especialidade social, ficavam atados às crenças e idéias religiosas, onde a vontade dos deuses e deusas era mais poderosa que os remédios e as cirurgias.

Por outro lado, mesmo com a comprovação histórica da estreita ligação dos médicos ao panteão — Medicina divina — em ensaios de acertos e erros, compondo o conhecimento historicamente acumulado, houve a busca de novos saberes da natureza circundante para curar as doenças — Medicina empírica. É possível que a proximidade entre essas duas práticas médicas, em especial as praticadas nos templos pelos representantes dos deuses e deusas, os sacerdotes e as sacerdotisas, tenha promovido a semente que levaria à construção da Medicina oficial, amparada pelo poder dominante.

De certo modo, mutatis mutandis, nos quatro cantos do planeta, continuamos comprovando a existência dessas três Medicinas.

ÍNDIA: MOHENJO-DARO
Em algumas áreas geográficas da atual Índia, especialmente, numa das mais antigas cidades do mundo, Mohenjo-Daro, floresceram práticas médicas também ligadas aos deuses e deusas, mas com impressionante número de livros que tratavam de questões médicas ainda hoje pouco compreendidas.

A principal característica dessa Medicina, em relação às do Egito e da Mesopotâmia, é o fato de cada doença ter sido tratada como certa categoria. Dessa forma, não havia a compreensão da nosologia em grupos de moléstias causadas pela mesma origem. Como consequência, gerou um enorme edifício de identidades dissociadas.

As rígidas regras religiosas, antes do período bramânico, interditaram o acesso à anatomia e fortaleceram as fórmulas mágicas contra demônios e os representantes humanos, com registros do Atharvaveda, o Veda da longa vida.

A Medicina divina estava nas mãos dos brâmanes, que transmitiam os saberes de Brama, e a Medicina empírica nas dos práticos, Vaidya, fora dos templos.

O deus principal ligado à Medicina, uma divindade menor, Dhanvantari ou o médico dos deuses. Apesar de não ser citado nos Vedas, aparece com especial realce nos Puranos. O principal texto da Medicina da Índia antiga, o Susruta Samhita (I, II, 12, 16), identifica-o como médico divino que recebeu de Brama o Ayurveda.

É interessante assinalar que, se comparada com outras divindades dos muitos panteões que povoaram as ideias e crenças religiosas, o deus Dhanvantari perdeu gradativamente a importância: retirado da posição divina para a de avatar de Vihnu, assumiu a forma humana, rei e médico, que morreu da mordida de uma cobra.

No período bramânico, iniciaram-se os esboços do estudo da anatomia. No livro o Susruta Samhita (III, 5), o corpo humano teria 300 ossos, 90 tendões, 210 articulações, 500 músculos, 70 vasos sanguíneos, 3 humores, 3 espécies de secreções e 9 órgãos dos sentidos. Trata-se de grande avanço na construção das ideias medicais, porque esse entendimento materializou partes do corpo fora do panteão.

Como acréscimo à materialização, ao largo do domínio dos deuses e deusas, a saúde e as doenças eram compreendidas, respectivamente, pelo equilíbrio e desequilíbrio de três humores ou partes vitais, essenciais, do corpo: o espírito, a bile e a fleuma.

Essa interessante estruturação de novas categorias, absolutamente originais, para materializar as moléstias seria retomada e ampliada na Escola de Cós, na Grécia do século 4 a.C., por Políbio, o genro de Hipócrates.

Como na Mesopotâmia, as primeiras culturas da Índia antiga, igualmente assentadas em áreas de várzea, nas margens do Rio Indo, com mosquitos proliferando na beira-rio fértil, a febre era a mais importante de todas as doenças, dividida em sete tipos diferentes; de acordo com o intervalo entre as exacerbações, era associada à cólera do deus Siva.

A varíola, claramente descrita com todas as complicações, inclusive causando a morte, era associada à deusa Sitala, nome que também designava a doença.

Um dos aspectos mais espetaculares dessas práticas médicas foi tecido em torno da cirurgia com descrições de técnicas cirúrgicas, como o retalho indiano, até hoje utilizado na reconstrução do nariz ou rinoplastias, regras para os curativos pós-operatórios e instrumentos específicos para facilitar a execução cirúrgica, como os vinte tipos de objetos cortantes, afastadores e as agulhas curvas de diferentes tamanhos.

As rinoplastias tornaram-se uma das cirurgias mais comuns por que a mutilação nasal era imposta como castigo em vários delitos, entre eles o adultério, descrito nas Leis de Manu.

Esse mesmo código de leis e procedimentos determinava importantes regras de higiene pessoal e coletiva: limpeza diária do corpo, lavagem da boca após as refeições, e retirar de dentro da casa as água servidas, fezes e urina.
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Rua de Mohenjo Daro.