Amigos do Fingidor

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Medicina na mitologia grega
João Bosco Botelho

Vênus de Milo, modelo grego de beleza - e de saúde.

A história das mentalidades assinala que a relação entre a Medicina e a compreensão mítica da realidade se perde no tempo. É impossível separar os muitos mitos relacionados ao entendimento que as pessoas fazem da saúde e da doença. É possível que esse pressuposto esteja vinculado ao apoio oferecido pelos mitos para apaziguar a angústia pessoal e coletiva nas sociedades que ainda não conseguem explicar de outra forma as contradições da vida e da morte.

É importante assinalar que os mitos com as respectivas metamorfoses nascem da relação com o mundo da natureza empírica, mas acima do meramente empírico.

As primitivas relações míticas do homem com outros animais, na pré-história, resultaram na valorização do sangue como o mais importante elemento simbólico. Posteriormente, depois do sedentarismo dos caçadores-coletores, o sangue foi substituído pelas novas relações com a terra cultivada, quando ocorreu o deslocamento dos mitos de origem em direção aos valores dos frutos da terra.

A lenda do guaraná dos índios maués, no Amazonas, tratando a fruta como remédio para todos os males, é um entre muitos exemplos de como os mitos de origem podem se relacionar com as mentalidades, sustentando, durante centenas de anos, explicações pontuais da saúde e da doença, da vida e da morte.

Nesse sentido específico, a construção dos mitos junto à terra cultivada contribuiu para fortalecer o uso das plantas na busca da saúde.

Muitos traços dessa mitologia passando do sangue à terra cultivada, como elementos essenciais à sobrevivência dos homens e das mulheres, evoluíram da Epopeia de Gilgamesh, dos babilônios, à gênese judaico-cristã, passando pela Yebá beló, a lenda dessana da criação do Sol.

Apesar da melhor compreensão da transformação do pensamento mítico e das incontáveis metamorfoses, a dificuldade da interpretação aumenta na proporção do tempo passado.

No Ocidente, a partir do século VI a.C., na Grécia, é possível construir, com alguma segurança, um perfil mítico da Medicina, em torno de metamorfoses que perduram até os dias atuais.

Na mitologia grega, a Medicina começou com Apolo, filho da união de Zeus com Leto. Inicialmente, Apolo era considerado como o deus protetor dos guerreiros; depois, foi identificado como Aplous, aquele que fala verdade. Esse deus curava as pessoas purificando a alma por meio de lavagens e aspersões e remédios obtidos das plantas medicinais. Por essa razão, Apolo era considerado como o deus que lavava e libertava o mal.

Um dos seus filhos, Asclépio recebeu educação do centauro Quíron para ser médico. A escolha do centauro não foi por acaso; ocorreu porque dominava os saberes da música, magia, adivinhações, astronomia e Medicina. Além dessas habilidades, Quíron possuía incomparável destreza: manejava com a mesma habilidade o bisturi e a lira.

Nos muitos templos espalhados nos territórios sob influência grega, Asclépio, o deus da Medicina grega, era celebrado em grandes festas públicas, no dia 18 de outubro.

Asclépio conquistou fama inimaginável: demonstrava a delicadeza do tocador de harpa e a habilidade agressiva do cirurgião. Os doentes que não obtinham a cura em outros oráculos procuravam os milagres desse deus taumaturgo. Mais cirurgião do que médico, ele criou as tiras, as ligaduras e as tentas para drenar as feridas. Chegou a ressuscitar os mortos e por ordem de Zeus, temendo que a ordem do mundo fosse transtornada, foi morto com os raios dos Ciclopes.

Asclépio deixou duas filhas e dois filhos. As filhas: Hígia, celebrada como a deusa da saúde perfeita; Panaceia, como vínculo das relações míticas com os frutos da terra cultivada, curava todas as doenças por meio das plantas medicinais. Os filhos, Machaon e Podalírio, os famosos médicos guerreiros, descritos por Homero, se destacaram recuperando a saúde dos guerreiros feridos na guerra de Troia.

Coube a Panaceia continuar a linhagem de médicos, fazendo do seu filho Hipocoonte, um médico famoso e ancestral de Hipócrates.

Existem muitas comprovações arqueológicas das dádivas de agradecimentos dos doentes para Asclépio. Especialmente, na ilha de Cós, onde floresceu a Escola Médica de Hipócrates, na Grécia, foram encontradas várias esculturas com o nome do doente a descrição da doença e da cura obtida. Outras esculturas contendo o nome de Asclépio, produzidas entre os séculos 6 e 2 a.C., contêm a serpente enrolada num bastão.

O simbolismo mítico da serpente ligado à Medicina já estava presente na civilização babilônica, dez séculos antes da formação da polis grega. Existe no Museu do Louvre, em Paris, um vaso de cerâmica encontrado na região de Lagash, representando o deus da cura babilônico – Ningishida – duas serpentes entrelaçadas.

De modo geral, os mitos que envolvem a serpente ligam-se à transcendência da morte. Entre as mais conhecidas explicações para entender a relação da Medicina com a serpente se destacam: a serpente pode viver em cima e embaixo da terra, atuando como mediador entre os dois mundos, e a capacidade da serpente para mudar a pele de tempos em tempos, encenando o renascimento. Esta última interpretação está relatada no Rig Veda (1.79,1), no qual os Adityas são descritos como os descendentes das serpentes, que, ao perderem a pele velha, venceram a morte e adquiriram a imortalidade.

Após a conquista romana da Grécia, Asclépio foi latinizado como Esculápio e as festas de celebração desse deus curador foram mantidas no dia 18 de outubro.

Com a cristianização de Roma, a partir de Constantino, no século 4, as festas populares comemorando o poder curador de Asclépio, no dia 18 de outubro, continuaram e se espalharam na Europa cristã.

O poder eclesiástico romano, sem força para interromper essa festa greco-romana, decidiu que o dia 18 de outubro, marcado pelas celebrações de Asclépio e Esculápio, fosse associado ao nascimento de São Lucas, o Evangelista médico.

A serpente de Asclépio se enrolou na cruz cristã e formou um dos mais belos sincretismos da história da humanidade. A primeira, símbolo da imortalidade embaixo da terra; a cruz, como a representação do inatingível acima da terra, fecham o ciclo mítico pendular entre o desconhecido situado acima da cabeça e abaixo dos pés do homem.

É possível que alguns dos médicos que se reúnem, nos dias atuais, para festejar a Medicina no dia 18 de outubro, desconheçam que continuam celebrando Asclépio.
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Asclépio, com a serpente, e os filhos Hígia, Panaceia, Machaon e Podalírio.