Amigos do Fingidor

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Medicina como Paideia I
João Bosco Botelho
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Asclépio, deus da Medicina, com o bastão e a serpente.
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Desde tempos ágrafos, os homens e as mulheres ora aliaram-se aos panteões, lutando para entender, sem aceitar, a finitude da vida frente à natureza circundante; ora organizaram-se para viver mais e melhor desafiando a tirânica competência dos deuses e das deusas para curar.

A Medicina como Paideia é um dos marcos nessa parte da história da humanidade, onde está transparente o conflito de competência entre as três medicinas — oficial, empírica e divina — com o objetivo de ampliar os limites da vida. Esse processo complexo, oriundo desde os tempos imemoriais, alcançou o esplendor na Grécia do século 4 a.C.

Desde lá, permanece um ponto diferencial entre as três medicinas: só a medicina-oficial organizou estruturas teóricas para sustentar as práticas de curas, só registradas a partir das primeiras cidades, assim, de natureza muitíssimo mais recente do que as outras.

Do outro lado, também a partir dos primeiros registros escritos, os poderes organizadores dos núcleos urbanos mais antigos ampararam, ora mais, ora menos, as três medicinas, pendendo mais para uma ou para outra, na mesma proporção em que resolviam os conflitos sociais provocados pelo medo coletivo da dor e da morte prematuras das epidemias que poderiam enfraquecer a ordem social.

Desde os tempos ágrafos, a medicina-divina e a medicina-empírica evidenciam-se plenamente ancoradas nas práticas divinatórias e nos milagres e, menos, nos saberes empíricos historicamente acumulados. Por essas razões, o diagnóstico, o tratamento e o prognóstico trabalhados de maneira ametódica e casual, sem compromisso da compreensão das etiologias.

Por outro lado, a maior parte das experiências empíricas acumuladas permaneceu guardada pelos especialistas da coisa sagrada. Estes fatores representaram ásperos obstáculos para reproduzir os saberes fora dos restritos grupos dos representantes das divindades, enclaustrados nos silêncios que impedem as críticas e as respostas.

Essa evidência fica muito clara nas civilizações que se desenvolveram na Mesopotâmia e nas margens dos rios Indo e Nilo. Apesar do notável senso empírico, as práticas de cura permaneceram contidas nas amarras do sagrado, como assinala a tradição judaica em pelo menos três argumentos:
1. O incrível poder do curador divino sobre a vida e a morte de tudo e de todos.
Dt 32: 39 — E agora, vede bem: eu, sou eu, e fora de mim não há outro Deus! Sou eu que mato e faço viver. Sou eu que firo e torno a curar (e da minha mão ninguém se livra).

2. Os saberes empíricos como dádivas divinas.
Sb 17: 20 — Ele me deu um conhecimento infalível dos seres para entender a estrutura do mundo, a atividade dos elementos, o começo, o meio e o fim dos tempos, a alteração dos solstícios, as mudanças de estações, os ciclos do ano, a posição dos astros, a natureza dos animais, a fúria das feras, o poder dos espíritos, os pensamentos dos homens, a variedade das plantas, as virtudes das raízes.

3. O médico como representante reconhecido e festejado da divindade.
Eclo 38: 1-2 — Rende ao médico as honras que lhe são devidas, por causa de seus serviços, porque o Senhor o criou. Pois é do Altíssimo que vem a cura, como um presente que se recebe do rei. A ciência do médico o faz trazer a fronte erguida, ele é admirado pelos grandes.

A cultura grega, no século 4 a.C., absorveu as origens mais antigas da medicina-divina e da medicina-empírica mantendo a figura social do médico, em princípio, como dono do saber notável.

Sem abandonar a influência do divino sobre a vida e a morte, os cantos homéricos mostraram o claro destaque do médico como representante da medicina-oficial e agente social na luta contra os agravos à saúde (Ilíada XI, 510: Máxima glória dos povos arquivos, Nestor de Gerena, toma o teu carro depressa; ao teu lado coloca Macáon, e para as naves escuras dirige os velozes cavalos, pois é sabido que um médico vale por muitos guerreiros, que sabe dardos extrair e calmantes deitar nas feridas).

O mesmo médico homérico também marcadamente estava inserido no espaço sagrado das relações sociais. Os médicos Macáon e Podalírio, que se destacaram na guerra de Tróia, mencionado por Homero, são os dois filhos de Asclépio, o deus protetor das medicinas gregas.

Essa aparente dualidade homérica, onde as três medicinas mostram-se sobrepostas, reproduz uma herança sócio-cultural muitíssimo mais anterior à cultura grega, perdida no tempo da ontogenia, e que a genialidade de Homero tratou de expor.

O deus Asclépio, filho de Apolo com a mortal Corônis conquistou uma fama inimaginável. Mais cirurgião do que médico, ele criou as tiras, as ligaduras e as tentas para drenar as feridas. Junto com as suas filhas Hígia e Panacéia, era celebrado em grandes festas populares, próximas do dia 18 de outubro, data em que, até hoje, se comemora o dia do médico no Ocidente.

No século 4 a.C., na Grécia, a medicina-oficial expondo abertamente o processo de conflito com outras medicinas, mas compreendida como arte, apresentava-se com clareza na estrutura dos saberes que procuravam desvendar a natureza visível e invisível.

A profissão médica estava tão bem sedimentada em sistemas de aprendizado que influenciou, profundamente, nos vinte séculos seguintes, os caminhos tomados pela medicina-oficial no Ocidente.

A medicina-oficial grega do século 4 a.C., concebida como ciência e, nessa condição, deveria valorizar a etiologia (Leucipo de Mileto In: Os Pré-Socráticos: fragmentos, doxografia e comentários. 2. ed. São Paulo. Abril Cultural. 1978. p. 297: Nenhuma coisa se engendra ao acaso, mas todas a partir da razão e por necessidade). A busca pela etiologia da doença entendida como pressuposto do diagnóstico e da terapêutica estava escancarada ao futuro: a fisiologia do corpo que amparava a prática dessa medicina-oficial estava ligada aos pré-socráticos, especificamente, aos filósofos jônicos, intérpretes da natureza circundante visível ou não por meio da tékhne.

Um dos fatos que torna essa reflexão fascinante é que, como hoje, longe de haver separação entre as práticas das três medicinas, a crença no poder de cura dos deuses e deusas e o empirismo continuaram fortes e coerentes com o universo cultural grego.

O herói grego continuou associado à cura de doenças e malefícios. O senso comum compreendia grande número de deuses e deusas possuindo, entre os principais atributos, o dom de sarar as doenças e as feridas de guerra (Platon. Oeuvres Complètes. Paris. Ed. Gallimard. Bibliothèque de la Pléiade. 1950. v.1, v.2. Rep. 407d: — Por conseguinte afirmaremos que também Asclépio sabia isto, e que, para os que gozam de saúde física, graças a sua natureza e à sua dieta, mas têm qualquer doença localizada, para os que têm essa constituição, ensinou a Medicina, que expulsa as suas enfermidades por meio de remédios e incisões, prescrevendo-lhes a dieta a que estão habituados, a fim de não prejudicarem os negócios políticos.)

Contudo, o médico atuava muito além do espaço sagrado, continuava exercendo a arte de adivinhar, porém sobre um sistema teórico coerente que observava e interpretava os sinais da natureza visível e invisível.

Esse avanço de dimensões gigantescas ­— a Medicina como Paideia — possibilitou estabelecer a ponte que ligaria, para sempre, a busca da etiologia das doenças ao diagnóstico, tratamento e prognóstico.

Desse modo, a Medicina como Paideia feriu profunda e mortalmente o predomínio da medicina-divina e da medicina-empírica sobre a medicina-oficial.