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Foi no Suplemento, como nós o simplificávamos, que eu ganhei dinheiro pela primeira vez com a minha escritura. De lá para cá, é bem verdade, a contabilidade avermelhou na casa do sem-jeito. Mas valeu ter esperança.
Publicado de novembro/86 a outubro/88, o Suplemento Literário Amazonas − publicação mensal do Diário Oficial do Estado do Amazonas, como se informava em subtítulo, teve exatamente 24 números. Por dois anos, os abnegados Arthur Engrácio e Alcides Werk, este poeta, aquele ficcionista e crítico, escritores que dispensam apresentação, carregaram, aos trancos, o jornal, que acabou sem avisar o porquê. Nesses dois anos, o presidente da Imprensa Oficial era o poeta Alencar e Silva. Na dança dos nomes da Comissão Editorial, destacavam-se os poetas Jorge Tufic e Max Carphentier, e a professora Socorro Santiago.
Mas se não anunciou a própria morte, mantendo a dignidade de não lamentar o próprio fim, no primeiro número, penas afiadas, o editorial dizia ao que vinha o Suplemento: “(...) Sem qualquer sentimento menor. Nem de grupo. Nem de modéstia. Comprometido, antes, com o propósito maior de espelhar a realidade literária local, projetá-la, com vigor, como convém, no cenário cultural do País. (...) de modo a minimizar a desinformação dos nossos estudantes acerca dos autores amazonenses. (...) um novo tempo começará a correr para os artistas e escritores locais.”
E assim se passaram 10 anos. A “realidade literária local” não se projetou para além dos esforços de uns pouquíssimos. A “desinformação dos nossos estudantes” precisa ser dividida, menos que proporcionalmente, com a dos nossos professores. E quanto ao “novo tempo”, este só se realiza no futuro: é sempre o que há de vir; logo, há esperança, sim. Sempre.
O Suplemento Literário Amazonas foi francamente inspirado no Suplemento Literário Minas Gerais, criado, se não me faltam os neurônios, lá pelos anos 60. Outros suplementos existiam (ainda existem?) à sombra da estrutura que sustentava o Diário Oficial de cada Estado. O Nicolau, do Paraná, era, até uns dois anos atrás, quando dirigido por Wilson Bueno, a grande referência para um jornal literário de qualidade, encarando a Literatura como um problema universal, longe das intrigas paroquianas. Depois que o Bueno saiu, percebe-se a queda na qualidade do papel, além de um doce retorno a um conservadorismo que, longe de negar os avanços da vanguarda, coloca-se à disposição da História, como alternativa. Afinal, é desse vaivém que se faz a Literatura, no entrechoque das gerações. Ainda é o Nicolau.
A trajetória do Suplemento Literário Amazonas ao longo daqueles 24 meses mereceria ser analisada com mais vagar. Voltado inicialmente para o consumo interno, o SLA reúne em seus números iniciais, um bom grupo de consagrados intelectuais da terra, sem desprezar a colaboração dos mais jovens. Além do pessoal “de dentro” do jornal, cujos nomes já estavam no expediente, há colaborações de Mário Ypiranga Monteiro, decano dos historiadores, e dos poetas Elson Farias, Guimarães de Paula, Ernesto Penafort e Antísthenes Pinto, entre tantos.
Quem folheia os velhos exemplares a essa distância, sente falta de um mínimo de esclarecimento sobre alguns autores, prática que só viria a ser adotada lá pelo oitavo número, quando as colaborações começam a chegar pelo correio, dos mais diferentes pontos do Brasil. O SLA trocava sua cor levemente provinciana por um tom algo mais cosmopolita. Mas sem exageros. Capas dedicadas a Borges, Rilke e Huidobro traziam em suas entranhas textos maduros de José Alcides Pinto, Francisco Carvalho, Walmir Ayala e Alcides Buss, entre outros, além da velha prata da casa. Todos muito distantes daqueles oito ou nove escritores “oficiais” do Brasil Grande, com cadeira cativa na Folha, no JB e na Veja. Equívocos, havia muitos. E nem poderia deixar de ser. Provincianos. Poemas muito ruins de uns, textos inúteis e vazios de outros, vagidos patéticos de terceiros, ou, ainda, os arroubos juvenis de um certo José Maria Pinto...
Pelo que me conta Alcides Werk, secretário-timoneiro daquele barco bêbado, as correspondências eram tantas que, da tiragem, que chegava aos três mil exemplares, pouco mais de quinhentos ficavam por aqui, sendo o restante distribuído entre universidades, entidades culturais, jornais e suplementos literários, além de escritores, de nomeada ou não. Quer dizer, por falta de uma tática consistente para atrair o público-alvo inicial, este foi trocado por uma elite, formada de bons leitores, mas que não ajudava em nada no fomento da literatura amazonense. Em compensação, o Brasil descobria o Amazonas. Um Brasil marginal, alternativo ao Brasil da grande imprensa e da televisão, mas Brasil também. Como nós.
Depois do SLA, os zines. Mas esta é uma outra história que a modéstia me impede de contar. Impossível, entretanto, é não fazer um paralelo entre o Suplemento e O Muhra, jornal recém-lançado pela Secretaria Estadual de Cultura. Aprendendo com os erros daquele, este pode recuperar o tempo e o espaço perdidos, em busca de sedimentar esta cultura que se intimida consigo mesma, mas que, subterrânea, submersa, maldita, manifesta-se à margem, como alternativa à mediocridade oficial.
Somos apenas uma parte da cultura brasileira, mas somos o todo da cultura amazonense, e precisamos assumir isso: nenhum ajuntamento, grupo ou sociedade sobrevive sem uma identidade própria. Qual é a nossa?
(*)Publicado, talvez no Amazonas em Tempo, em 1998 (eu acho).