Amigos do Fingidor

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

A formiguinha
Tenório Telles


A amizade é coisa rara neste tempo de solidão e desconfiança entre as pessoas. Fazemos parte da comunidade humana e não fomos capazes de construir um mundo fundado em relações verdadeiramente fraternas. Vivemos sob o reinado da mentira e da esperteza. Somos milhões convivendo no mesmo espaço e entre nós reina a distância e a indiferença. Os gestos de carinho e amizade são olhados com desconfiança.

Como conseguimos viver sem carinho e bondade? O que aconteceu com os sentimentos e nossa capacidade de amar e querer bem? São perguntas que rumino sem encontrar uma resposta. Creio, entretanto, que lá no fundo, escondidinho no coração, o amor jaz como uma brasa, encoberta de cinzas, à espera do sopro e do gesto capaz de reacendê-lo. Talvez seja por isso que as pessoas têm adotado os animais como companheiros: cada dia mais solitários, buscamos a companhia de cachorros, gatos e passarinhos. Alguns, desejosos de amizades mais exóticas, fazem-se amigos de sapos, lagartos e até cobras.

Como as relações se tornaram impessoais, há dias que sentimos falta do convívio afetivo dos amigos, de ser ouvido e estar próximo, protegido pelo cuidado e aconchego. Nesta sociedade, em que prevalecem sempre os interesses e as conveniências, ter um amigo de verdade é coisa rara. Há mais de dois mil anos, o comediógrafo grego Menandro já chamava a atenção para o fato: “Feliz daquele que encontrou um amigo digno desse nome”. Note, leitor, que o conteúdo da frase está no singular: “um amigo”. Se foste premiado com este presente, trate de cuidar, porque a amizade é um remédio para os males da alma.

Quando falo de amizade não me refiro apenas em relação ao ser humano. Pode ser por um cão ou por um passarinho. Esses dias, ando afeiçoado por uma formiguinha. Em meio aos papéis, dispostos sobre minha mesa de trabalho, ela anda apressada, como se procurasse o caminho de casa. Escala os livros, pára, cheira as palavras e avança. De vez quando levanta a cabeça, olha para os lados e segue em frente. Para testar sua determinação, coloco lápis e canetas em seu percurso: não recua, vence todos os obstáculos e vai em frente.

Penso que ela se perdeu de sua colônia. Todos os dias ela aparece. Minha mesa é o seu refúgio. Fico imaginando como chegou aqui, tão longe do seu formigueiro e, além do mais, sozinha! Estendo a minha mão e ela pára, mexe as patinhas, cheira e sobe pelos meus dedos. Brinco com ela, coloco a mão para cima, para baixo, não se intimida. Distraio-me e desaparece entre os papéis. Enfastiado pelos afazeres, sinto sua falta e a procuro. Reviro as folhas, removo os objetos, quando menos espero lá aparece minha boa amiga. Recomeçamos o nosso jogo: demonstro que estou alegre com sua presença, sopro-a carinhosamente. Noto que fica aborrecida, levanta as patas como se esperasse um ataque. Calma, segue em sua busca.

O que procura a minha amiguinha? De onde vem? Para onde vai? Preocupado com sua saúde, dou-lhe uns pedacinhos de bolacha. É tão pequenininha que desaparece sob os cubos de “cream cracker”. Encontra um fragmento de biscoito, prende com suas garras e foge apressada. Sigo-a com os olhos até que desaparece na floresta de papel sobre a mesa. Anoitece e vou para casa, receoso de não mais encontrá-la no dia seguinte. Ah, formiguinha, companheira de solidão e resistência neste mundo de brutalidade e vazio, que bom tê-la nestes dias insípidos. Já fazes parte de mim e habitas o meu carinho.