Inácio Oliveira
Não consigo parar de pensar
no sonho que tive com a mãe, no sonho ela me entrega um velho álbum de
fotografias e diz – veja em quantas dessas fotografias você esta faltando. Fico
pensando nas profundas significações deste sonho. O telefone toca, é meu irmão.
Ele diz que a mãe acabou de morrer, não sei o que dizer pra ele. Sinto apenas
uma espécie de alívio e tristeza: alívio por não ter mais que pensar na mãe
como se pensa num moribundo, tristeza por pensar nela como se pensa em alguém
que já não existe mais. Vou ter que deixar meu trabalho aqui e pegar um voo
para o Brasil, odeio viagens longas, aeroportos, filas, turistas abobalhados,
essas coisas. Mas meu irmão precisa de mim, ele sempre foi o tipo de pessoa que
precisa de alguém, não sabe fazer nada sozinho. Deve estar desesperado,
coitado. Imagina meu irmão tendo de lidar com hospital, velório, enterro. Mesmo
depois de morta a mãe é capaz de deixá-lo em pânico. A mãe sempre foi uma
pessoa dominadora e intransigente, mas agora que ela morreu sua lembrança me
vem revestida de uma candura e delicadeza que ela não tinha, a morte tem suas
vantagens. Lembro-me a última vez que a vi, na despedida lhe falei alguma coisa
sobre seu cabelo que estava ficando grisalho, se eu soubesse que esta era a
última coisa que eu lhe diria teria dito outra coisa.
Nunca fui bom em fazer as
malas, eu simplesmente pego algumas coisas necessárias, jogo dentro e pronto. Comprei
a passagem pela internet, o voo está marcado para as nove da noite, é só
esperar. Pedi para a vizinha alimentar a Gertrudes uma vez por semana enquanto
eu estiver fora, sei que ela tem medo de animais como este e deve achar estranho
que um sujeito tenha um réptil como bicho de estimação, mas ela é uma boa
senhora e não vai deixar a Gertrudes morrer de fome, além disso, esta cobra é
inofensiva e dócil e é fácil alimentá-la, basta fazer a papa que eu lhe ensinei
e deixar no recipiente de plástico que ela mesma pega. Seria absurdo levar a
cobra pra ver o enterro da mãe, mas eu vou sentir faltar deste animal que me
reconhece, confia em mim e que me compreende.
O táxi buzina lá embaixo,
sempre pontuais. A minha mala é pequena, eu não tenho quase nada. De dentro do
táxi vejo as ruas iluminadas, é como se fosse natal. Pequenos flocos de neve
nas calçadas me fazem pensar o quanto estou longe de casa. O taxista fala
comigo num dialeto estranho, me aborrece que ele não fale português e que eu
tenha que fazer um grande esforço para compreendê-lo. Digo pra ele, em
português mesmo, que a minha mãe morreu de câncer num hospital do Brasil hoje às
três horas da tarde, ele diz que não consegue me entender e eu já não me
importo que ele não fale português. O táxi
prossegue em silêncio, as ruas vão se tornando cada vez mais vazias, me distraio
olhando as vitrines, os cafés, as árvores, os letreiros, uma moça com
guarda-chuva, um senhor com um cão, um casal de namorados... Vou colecionando
essas imagens quando a imagem do corpo da mãe sobre uma pedra fria se interpõe
no meu pensamento. Sinto que devo chorar, mas não consigo. Meu pensamento não
se acostuma com a ideia de que a mãe esteja morta e volto a pensar em outra
coisa.
No aeroporto uma
temperatura confortável contrasta com o frio das ruas. As pessoas apresentam
uma expressão hostil de enfado e tédio com os rituais de chegar e partir,
exceto por um grupo de jovens, provavelmente alunos de intercâmbio, que falam
alto e riem, deslumbrados e imbecis. O embarque não demorou tanto quanto eu imaginara,
acomodo-me ao lado da janela e uma senhora gorda de pele rosada senta-se ao meu
lado. Ela fala comigo alguma coisa que parece ser russo ou alemão. I don’t understand, digo idiotamente. Ela resmunga
e eu fixo meu olhar perdido através da janela. Quando o avião decola vejo
aquela imensa cidade se transformar em milhares de pontos brilhantes na
imensidão, isso me faz sentir uma saudade antecipada: as ruas antigas, os
museus, as bibliotecas, a neve caindo pela manhã, não sei porquê mas eu gosto
disso. De repente tenho a sensação que isto é uma despedida e que jamais irei
voltar, penso em Gertrudes e desejo que ela esteja bem. Sinto que vou sofrer e
isso não me assusta e eu até gosto. Preciso sofrer, é justo e necessário. Não
sai da minha cabeça aquele sonho – veja em quantas dessas fotografias você está
faltando. Centenas de fotografias nas quais há um espaço vazio que devia ser
ocupado por mim se sucedem velocíssimas como num vídeo. Penso novamente em Gertrudes
dentro de uma caixa de vidro sozinha no meu apartamento, a mãe no necrotério do
hospital e meu irmão ao lado, desamparado. Todos no avião dormem, devo estar
neste momento sobre o Oceano Atlântico e ao saber disso minha solidão atinge
outra dimensão.
Quando desço do avião
sinto um frio no estomago, uma vontade de vomitar. Olho para as pessoas elas
parecem felizes. Sinto-me desconfortável, um estrangeiro e isso é pior do que
tudo, porque aqui eu não sou estrangeiro. Pego um táxi, meu irmão já deve ter
esperado demais, talvez nem tenha dormido. Torço para que o taxista não puxe
assunto comigo, é inevitável em qualquer lugar do mundo eles sempre puxam
conversa, é incrível. Digo pra ele que trabalho numa companhia de petróleo e
estou de volta para rever a família, ele se impressiona, as pessoas se
impressionam com qualquer coisa.
Encontro meu irmão seus
olhos estão vermelhos, mas ele não parece triste, apenas cansado. Ele me abraça
sem dizer nada, eu também não sei o que dizer a ele, nunca sei o que dizer
nessas horas. Podemos ficar horas aqui um olhando para o outro e não vamos
conseguir dizer nada, e nem mesmo este silêncio quer dizer alguma coisa. A mãe
já está na pequena capela do hospital. Um caixão simples, seu corpo está
coberto de flores. Fico pensando quem teve o cuidado de arrumar estas flores, o
meu irmão não foi. Rosas, tulipas, begônias e margaridas exalam um cheiro que
misturado com naftalina me lembram uma coisa antiga que eu não sei exatamente o
que é, me vem uma vaga lembrança de missa numa manhã de domingo.
Olho no rosto da mãe e ela
parece a estátua de cera de uma velha atriz que vi outro dia num museu em algum
lugar do mundo, qual era mesmo o nome daquela atriz? Quero que tudo isso acabe,
também estou cansado. Não há mais ninguém na capela, apenas eu e meu irmão. A
partir de agora eu cuido dos detalhes do enterro, meu irmão não precisa mais se
preocupar, ele parece aliviado. O que ele fará da vida agora sem a mãe pra
mandar nele? Ele sabe que não pode contar comigo. E eu, o que farei? Acendo um
cigarro e a única coisa que consigo pensar é naquele sonho. – Veja em quantas
dessas fotografias você está faltando.