Amigos do Fingidor

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

A mãe


Inácio Oliveira
 
Não consigo parar de pensar no sonho que tive com a mãe, no sonho ela me entrega um velho álbum de fotografias e diz – veja em quantas dessas fotografias você esta faltando. Fico pensando nas profundas significações deste sonho. O telefone toca, é meu irmão. Ele diz que a mãe acabou de morrer, não sei o que dizer pra ele. Sinto apenas uma espécie de alívio e tristeza: alívio por não ter mais que pensar na mãe como se pensa num moribundo, tristeza por pensar nela como se pensa em alguém que já não existe mais. Vou ter que deixar meu trabalho aqui e pegar um voo para o Brasil, odeio viagens longas, aeroportos, filas, turistas abobalhados, essas coisas. Mas meu irmão precisa de mim, ele sempre foi o tipo de pessoa que precisa de alguém, não sabe fazer nada sozinho. Deve estar desesperado, coitado. Imagina meu irmão tendo de lidar com hospital, velório, enterro. Mesmo depois de morta a mãe é capaz de deixá-lo em pânico. A mãe sempre foi uma pessoa dominadora e intransigente, mas agora que ela morreu sua lembrança me vem revestida de uma candura e delicadeza que ela não tinha, a morte tem suas vantagens. Lembro-me a última vez que a vi, na despedida lhe falei alguma coisa sobre seu cabelo que estava ficando grisalho, se eu soubesse que esta era a última coisa que eu lhe diria teria dito outra coisa.
Nunca fui bom em fazer as malas, eu simplesmente pego algumas coisas necessárias, jogo dentro e pronto. Comprei a passagem pela internet, o voo está marcado para as nove da noite, é só esperar. Pedi para a vizinha alimentar a Gertrudes uma vez por semana enquanto eu estiver fora, sei que ela tem medo de animais como este e deve achar estranho que um sujeito tenha um réptil como bicho de estimação, mas ela é uma boa senhora e não vai deixar a Gertrudes morrer de fome, além disso, esta cobra é inofensiva e dócil e é fácil alimentá-la, basta fazer a papa que eu lhe ensinei e deixar no recipiente de plástico que ela mesma pega. Seria absurdo levar a cobra pra ver o enterro da mãe, mas eu vou sentir faltar deste animal que me reconhece, confia em mim e que me compreende.
O táxi buzina lá embaixo, sempre pontuais. A minha mala é pequena, eu não tenho quase nada. De dentro do táxi vejo as ruas iluminadas, é como se fosse natal. Pequenos flocos de neve nas calçadas me fazem pensar o quanto estou longe de casa. O taxista fala comigo num dialeto estranho, me aborrece que ele não fale português e que eu tenha que fazer um grande esforço para compreendê-lo. Digo pra ele, em português mesmo, que a minha mãe morreu de câncer num hospital do Brasil hoje às três horas da tarde, ele diz que não consegue me entender e eu já não me importo que ele não fale português.  O táxi prossegue em silêncio, as ruas vão se tornando cada vez mais vazias, me distraio olhando as vitrines, os cafés, as árvores, os letreiros, uma moça com guarda-chuva, um senhor com um cão, um casal de namorados... Vou colecionando essas imagens quando a imagem do corpo da mãe sobre uma pedra fria se interpõe no meu pensamento. Sinto que devo chorar, mas não consigo. Meu pensamento não se acostuma com a ideia de que a mãe esteja morta e volto a pensar em outra coisa.
No aeroporto uma temperatura confortável contrasta com o frio das ruas. As pessoas apresentam uma expressão hostil de enfado e tédio com os rituais de chegar e partir, exceto por um grupo de jovens, provavelmente alunos de intercâmbio, que falam alto e riem, deslumbrados e imbecis. O embarque não demorou tanto quanto eu imaginara, acomodo-me ao lado da janela e uma senhora gorda de pele rosada senta-se ao meu lado. Ela fala comigo alguma coisa que parece ser russo ou alemão. I don’t  understand, digo idiotamente. Ela resmunga e eu fixo meu olhar perdido através da janela. Quando o avião decola vejo aquela imensa cidade se transformar em milhares de pontos brilhantes na imensidão, isso me faz sentir uma saudade antecipada: as ruas antigas, os museus, as bibliotecas, a neve caindo pela manhã, não sei porquê mas eu gosto disso. De repente tenho a sensação que isto é uma despedida e que jamais irei voltar, penso em Gertrudes e desejo que ela esteja bem. Sinto que vou sofrer e isso não me assusta e eu até gosto. Preciso sofrer, é justo e necessário. Não sai da minha cabeça aquele sonho – veja em quantas dessas fotografias você está faltando. Centenas de fotografias nas quais há um espaço vazio que devia ser ocupado por mim se sucedem velocíssimas como num vídeo. Penso novamente em Gertrudes dentro de uma caixa de vidro sozinha no meu apartamento, a mãe no necrotério do hospital e meu irmão ao lado, desamparado. Todos no avião dormem, devo estar neste momento sobre o Oceano Atlântico e ao saber disso minha solidão atinge outra dimensão.
Quando desço do avião sinto um frio no estomago, uma vontade de vomitar. Olho para as pessoas elas parecem felizes. Sinto-me desconfortável, um estrangeiro e isso é pior do que tudo, porque aqui eu não sou estrangeiro. Pego um táxi, meu irmão já deve ter esperado demais, talvez nem tenha dormido. Torço para que o taxista não puxe assunto comigo, é inevitável em qualquer lugar do mundo eles sempre puxam conversa, é incrível. Digo pra ele que trabalho numa companhia de petróleo e estou de volta para rever a família, ele se impressiona, as pessoas se impressionam com qualquer coisa.
Encontro meu irmão seus olhos estão vermelhos, mas ele não parece triste, apenas cansado. Ele me abraça sem dizer nada, eu também não sei o que dizer a ele, nunca sei o que dizer nessas horas. Podemos ficar horas aqui um olhando para o outro e não vamos conseguir dizer nada, e nem mesmo este silêncio quer dizer alguma coisa. A mãe já está na pequena capela do hospital. Um caixão simples, seu corpo está coberto de flores. Fico pensando quem teve o cuidado de arrumar estas flores, o meu irmão não foi. Rosas, tulipas, begônias e margaridas exalam um cheiro que misturado com naftalina me lembram uma coisa antiga que eu não sei exatamente o que é, me vem uma vaga lembrança de missa numa manhã de domingo. 
Olho no rosto da mãe e ela parece a estátua de cera de uma velha atriz que vi outro dia num museu em algum lugar do mundo, qual era mesmo o nome daquela atriz? Quero que tudo isso acabe, também estou cansado. Não há mais ninguém na capela, apenas eu e meu irmão. A partir de agora eu cuido dos detalhes do enterro, meu irmão não precisa mais se preocupar, ele parece aliviado. O que ele fará da vida agora sem a mãe pra mandar nele? Ele sabe que não pode contar comigo. E eu, o que farei? Acendo um cigarro e a única coisa que consigo pensar é naquele sonho. – Veja em quantas dessas fotografias você está faltando.