Pedro Lindoso
Lucília
era uma senhora solteira. No nordeste seria considerada uma típica vitalina.
Procuradora aposentada, vivia num confortável apartamento, cheio de
recordações de viagens, retratos dos pais, já falecidos, irmãos que moram
distante, sobrinhos espalhados pelo mundo.
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Numa de
suas últimas viagens, por países andinos, comprou um gramofone, numa feira de
antiguidades. Junto com o antiquíssimo aparelho vinha um conjunto de discos
antigos, compatíveis com o tal. Uma pitoresca coleção de valsas, todas
exclusivamente de Johann Strauss. Nascido em Viena, na Áustria, Strauss
é um dos ícones do Romantismo. Compôs centenas de valsas, além de operetas,
polcas e marchas. Ao chegar ao hotel, Lucília ouve em pleno hall,
em alto e bom som, Sonhos de Juventude, valsa composta em 1846. Achou
uma mera coincidência. Foi descansar. No meio da noite, acordou espantada, ao
som da valsa Só se vive uma vez!
No dia
seguinte, deveria tomar o avião de volta para casa. Espantou-se novamente. A
valsa Choros de Despedida era tocada no aeroporto assim que terminou de
fazer seu check in. Sentiu palpitações e naquele momento a valsa Accelerationen ecoava por todo o
terminal, causando uma estranha sensação de euforia em Lucília.
Ao chegar
em casa, desfez as malas, desembrulhou o gramofone, posicionando-o numa singela
mesinha ao lado de uma querida chaise longue, que compunha
sua vasta sala de estar. Embaixo da mesinha, colocou a coleção de discos de
Strauss.
Foi
dormir. Uma sucessão de valsas, agora vindas de sua sala, invadiam seu quarto,
deixando-a perplexa e intrigada. Das Montanhas, de 1864; Mil e Uma
Noites de 1871; e para terminar a noite, a valsa Em Casa, composta
em 1873.
Pela
manhã, encontrou um disco no gramofone. Era o disco daquelas valsas que havia
escutado de seu quarto. Aquilo estava ficando sério e Lucília, católica
fervorosa, sentia-se incapaz de lidar com aquela situação inusitada.
À noite
seguinte, o misterioso tocar de valsas continuou. Vinho, Mulheres e Música,
de 1869, fez Lucília se lembrar de
um antigo e impossível amor. Era o mês de dezembro, o Natal se aproxima e faz
com que Lucília fique cada vez mais nostálgica. Contos dos Bosques de Viena,
seguida de Vozes da Primavera,
fez com que Lucília tivesse coragem de levantar-se e ir até a sala.
Pasmem.
Um casal rodopiava pela sala de Lucília ao som de Sangue Vienense, composta por Strauss em 1873. Fez
um esforço para ver se conhecia o casal. Inútil. Não eram estranhos a ela, mas
não conseguia identificá-los. O casal ignorava Lucília, e em seguida dançaram Cuida
de quem confias! e Adeus a S.
Petersburgo. De súbito, o casal sumiu e o gramofone parou de tocar.
Naquele
momento, Lucília decidiu que não ficaria com o gramofone em casa. Também não
gostaria de entregá-lo a alguém conhecido que pudesse ser admoestado pelo tal
gramofone encantado. Era época de Natal. Ninguém mereceria receber um presente
tão perturbador.
O que
fazer? Lembrou-se de Maria Tereza, sua amiga de infância que administra um
asilo de velhinhos. Foi sincera com a amiga. Contou-lhe os mistérios que
estavam por trás do gramofone. Que fizesse uma rifa. Destinando o dinheiro ao
asilo, o que era uma boa causa, em especial nesta época natalina. Serviria para
fazer uma ceia completa para os idosos ali esquecidos. Talvez uma ação de boa
vontade pudesse exorcizar os mistérios do gramofone. E assim foi feito.
Maria
Tereza ficou feliz com o presente, mas não acatou a sugestão da sua querida
amiga Lucília. Colocou o gramofone no salão de festas do asilo. Daquele ano em
diante, nas noites de réveillon, velhinhos deste mundo e de outros
dançam valsas vienenses, sempre depois da meia-noite, saudando o ano que se
inicia. A primeira valsa é sempre An
der schönen blauen Donau, a famosíssima Danúbio Azul.
Alguns
dançarinos preferem a Valsa do Imperador, outros se entusiasmam com a Valsa
do Tesouro e outros com Vozes da Primavera. O réveillon acaba,
invariavelmente, todos os anos, ao som da valsa Grande Viena.
E o asilo
nunca mais foi o mesmo.