Tainá Vieira
Não
me lembro agora exatamente o dia, mas sei que era manhã de maio e fazia muito
calor. Foi logo no inicio de sua estadia na Fundação Dr. Tomas, quando eu ia lá
praticamente todos os dias, me acompanhando sempre o jornal do dia e duas peras.
O horário de visita era de apenas uma hora, e eu passava uma hora exata em sua
companhia. Chegava, ele me cumprimentava beijando-me a mão e eu a sua, fazia
uma festa, e, o que eu mais gostava, ele sorria um sorriso charmoso e sedutor,
dizendo-me frases em francês. Outras vezes falava em japonês ou alemão.
Gostava de mostrar que sabia muitas coisas. Nisso reconheço a vaidade do homem
Bacellar. Naquele dia,
o encontrei lendo a biografia da escritora norte-americana Patricia Highsmith.
De inicio a conversa girou em torno da vida da escritora, ele falou-me da obra
e também da vida pessoal da mesma, e isso fez com que eu lembrasse a pintora
Frida Kahlo. Comecei falar de algumas semelhanças que percebi entre as duas, e ele
se mostrou muito interessando na minha conversa, me perguntou se eu conhecia a
obra de Frida e se já havia lido algum romance de Patricia; depois me perguntou
se gostava de romances policiais, o que estava lendo e outras coisas mais. Era
pura gentileza, claro.
Sempre
havia assunto, sua consciência estava sempre acordada, ele contava muitas
histórias, falava de lugares que conhecia só de ler nos livros e falava com
tanto conhecimento que me transportava para lá. Cada encontro era sempre uma
aprendizagem. Às vezes falava uma palavra desconhecida e eu rapidamente
perguntava o que o era e ele logo me explicava.
Conversávamos muito sobre tudo, mas eu sempre trazia a conversa para sua
obra; um dia cheguei a dizer-lhe que seria uma especialista na obra bacellariana.
Ele sorriu, enigmático. Falei dos seus
livros, de como adorava seus poemas, que o considerava o maior e o melhor poeta
da literatura do Amazonas. Naquele dia,
até perguntei por que não escrevia enquanto estava ali se recuperando; ele
disse-me que não dava, pois para escrever era preciso estar com a cabeça tranquila,
mas quando saísse iria ajeitar alguns haicais inéditos e escrever mais cinco
rondéis para Sol de feira. Aí entramos
no paraíso, na minha paixão, Sol de feira.
Aqui
abro um parêntese para lembrar que a obra de Bacellar, excetuando os haicais de
Satori, foi toda escrita antes dos 45
anos. Mais: Frauta de barro e Quatro movimentos foram escritos até os
30 anos.
Como
uma bacellariana de carteirinha, afirmo: mesmo que Luiz Bacellar tivesse
escrito apenas um dos seus quatro livros, qualquer um dos quatro, ainda sim,
ele teria o mesmo valor que tem hoje, ainda sim ele seria um dos maiores poetas
da literatura brasileira. O que faz um poeta não é quantidade, é qualidade, é a
carga de conhecimento que está na essência de sua obra. Um poema de Luiz
Bacellar é um verdadeiro tesouro, pois quando se lê um poema seu, conhece-se
lugares, línguas, filosofias, músicas, autores e, principalmente, conhece-se
mais sobre a própria existência.
Frauta de barro,
premiado em 1959, seu livro de estréia, é um livro de memórias: Há tanta angústia antiga em cada prédio!/ Em
cada pedra nua e gasta. E agora/ Em necessário pranto que demora/ O amargo
verso vem como remédio (...). A poesia é um bálsamo para as angústias do
poeta. Quatro movimentos ou Quatuor, que também estava entre os poemas premiados em 1959, eu
diria que é um livro escrito com caneta de pena e tinta de ouro no papel de
seda, divido em quatro partes denominadas “Carta Sazonal”, “Carta Pastoral”, “Carta
Lunar” e “Carta Náutica”; são pequenas jóias raras, esculpidas pelas mãos de um
ourives, que coloca na sua obra delicadeza e emoção inigualáveis: O meu verso é um fragor: desmoronar-me/
sinto quando escrevo. E o ruído é tanto/ que vou com passo incerto no meu
canto/ como se caminhasse à beira-mar/ num dia de ressaca sob um luar/ como o
de agora (a Via Láctea é um manto/ salpicado de sal, de prata e pranto)/ em que
as horas de esquecem de passar./ Meu verso é um natural correr de pena/ que
rasga, que destrói, mutila e mata/ minhalma que é de espuma e de verbena:/ é um
vestido deixado sobre a cama,/ vazio de um corpo amado. E me arrebata/ no vácuo
intenso do meu próprio drama. Alguém
conhece um gênio que consiga escrever algo assim?! Eu o conheci, Luiz Bacellar!
Sobre
Satori, não há em mim, palavras para
falar desse livro, pois sua grandeza e
seu conteúdo vão tão alem de qualquer
análise ou crítica que ainda não me vejo preparada para tamanha responsabilidade;
mas um dia quem sabe, decifrarei os mistérios, como este: quando o sol acende/ os cristais que a chuva/ pendurou na teia; ou
este outro: dentro da papoula/ o pirilampo
apaga a / lâmpada de fada.
E por último Sol de feira, de 1973, ah, esse é o que me leva a caminhos tão
distantes. Através dele, fui também tripulante da viagem de Vasco da Gama em Os Lusíadas, e consegui fazer parte da
viagem entrando pelo “rondel do limão”: chega o limão/
ácido e raro/
seivoso e claro/
como o verão /o
poeta di-lo/
cúpido e ardente/
túmido e olente/
verde mamilo//
na toalha branca/de
mesa parca/
seu brando grumo/
empresta ao sal/
fino o cristal/
do fresco sumo. E o que dizer do “rondel da
goiaba”: teu verde fruto/ entre a
folhagem/ se denuncia/ pelo perfume,/ o doce sumo/ de tua polpa/ lembra a
saliva/ de uma cabocla (...). Esses são alguns dos rondéis que há no Sol de feira, e foram dois dos quais
trabalhei para o III Colóquio Poéticas do Imaginário, da UEA, de 2012. Do clássico Camões à cabocla de sua terra, como nenhum outro,
Luiz Bacellar é o poeta do mundo, pela sua sabedoria, delicadeza e
maestria. Deixou para nós um legado
vasto, cabe a nós aproveitá-lo para tentar compreender a mente de um poeta que
fez de uma simples fruta, uma jóia para a poesia. O que esperar, agora que ele partiu? Pela sensibilidade de sua obra, que
seus versos
ecoem por vales e montanhas e seu nome seja lembrado por muitas
e muitas gerações.
Quando
a visita acabava, eu voltava para casa feliz e triste. Triste por ele estar
ali, e feliz, por ele ceder-me uma hora da sua nobre companhia. Com um travo na garganta, socorro-me de Walt
Whitman: Oh capitão! Meu capitão! Nossa
jornada medonha terminou. Entretanto, sei que, como a Fênix, ele ressurge
em outras plagas.
(Publicado originalmente na revista Amazonas
Educação.)