Amigos do Fingidor

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Luiz Bacellar, aqui e além


Tainá Vieira

 

Não me lembro agora exatamente o dia, mas sei que era manhã de maio e fazia muito calor. Foi logo no inicio de sua estadia na Fundação Dr. Tomas, quando eu ia lá praticamente todos os dias, me acompanhando sempre o jornal do dia e duas peras. O horário de visita era de apenas uma hora, e eu passava uma hora exata em sua companhia. Chegava, ele me cumprimentava beijando-me a mão e eu a sua, fazia uma festa, e, o que eu mais gostava, ele sorria um sorriso charmoso e sedutor, dizendo-me frases em francês. Outras vezes falava em japonês ou alemão. Gostava de mostrar que sabia muitas coisas. Nisso reconheço a vaidade do homem Bacellar.  Naquele dia, o encontrei lendo a biografia da escritora norte-americana Patricia Highsmith. De inicio a conversa girou em torno da vida da escritora, ele falou-me da obra e também da vida pessoal da mesma, e isso fez com que eu lembrasse a pintora Frida Kahlo. Comecei falar de algumas semelhanças que percebi entre as duas, e ele se mostrou muito interessando na minha conversa, me perguntou se eu conhecia a obra de Frida e se já havia lido algum romance de Patricia; depois me perguntou se gostava de romances policiais, o que estava lendo e outras coisas mais. Era pura gentileza, claro.
Sempre havia assunto, sua consciência estava sempre acordada, ele contava muitas histórias, falava de lugares que conhecia só de ler nos livros e falava com tanto conhecimento que me transportava para lá. Cada encontro era sempre uma aprendizagem. Às vezes falava uma palavra desconhecida e eu rapidamente perguntava o que o era e ele logo me explicava.  Conversávamos muito sobre tudo, mas eu sempre trazia a conversa para sua obra; um dia cheguei a dizer-lhe que seria uma especialista na obra bacellariana. Ele sorriu, enigmático.  Falei dos seus livros, de como adorava seus poemas, que o considerava o maior e o melhor poeta da literatura do Amazonas.  Naquele dia, até perguntei por que não escrevia enquanto estava ali se recuperando; ele disse-me que não dava, pois para escrever era preciso estar com a cabeça tranquila, mas quando saísse iria ajeitar alguns haicais inéditos e escrever mais cinco rondéis para Sol de feira. Aí entramos no paraíso, na minha paixão, Sol de feira.
Aqui abro um parêntese para lembrar que a obra de Bacellar, excetuando os haicais de Satori, foi toda escrita antes dos 45 anos. Mais: Frauta de barro e Quatro movimentos foram escritos até os 30 anos.
Como uma bacellariana de carteirinha, afirmo: mesmo que Luiz Bacellar tivesse escrito apenas um dos seus quatro livros, qualquer um dos quatro, ainda sim, ele teria o mesmo valor que tem hoje, ainda sim ele seria um dos maiores poetas da literatura brasileira. O que faz um poeta não é quantidade, é qualidade, é a carga de conhecimento que está na essência de sua obra. Um poema de Luiz Bacellar é um verdadeiro tesouro, pois quando se lê um poema seu, conhece-se lugares, línguas, filosofias, músicas, autores e, principalmente, conhece-se mais sobre a própria existência.
Frauta de barro, premiado em 1959, seu livro de estréia, é um livro de memórias: Há tanta angústia antiga em cada prédio!/ Em cada pedra nua e gasta. E agora/ Em necessário pranto que demora/ O amargo verso vem como remédio (...). A poesia é um bálsamo para as angústias do poeta.  Quatro movimentos ou Quatuor, que também estava entre os poemas premiados em 1959, eu diria que é um livro escrito com caneta de pena e tinta de ouro no papel de seda, divido em quatro partes denominadas  “Carta Sazonal”, “Carta Pastoral”, “Carta Lunar” e “Carta Náutica”; são pequenas jóias raras, esculpidas pelas mãos de um ourives, que coloca na sua obra delicadeza e emoção inigualáveis: O meu verso é um fragor: desmoronar-me/ sinto quando escrevo. E o ruído é tanto/ que vou com passo incerto no meu canto/ como se caminhasse à beira-mar/ num dia de ressaca sob um luar/ como o de agora (a Via Láctea é um manto/ salpicado de sal, de prata e pranto)/ em que as horas de esquecem de passar./ Meu verso é um natural correr de pena/ que rasga, que destrói, mutila e mata/ minhalma que é de espuma e de verbena:/ é um vestido deixado sobre a cama,/ vazio de um corpo amado. E me arrebata/ no vácuo intenso do meu próprio drama.  Alguém conhece um gênio que consiga escrever algo assim?! Eu o conheci, Luiz Bacellar!
Sobre Satori, não há em mim, palavras para falar desse livro, pois sua grandeza e  seu conteúdo vão tão alem de qualquer  análise ou crítica que ainda não me vejo preparada para tamanha responsabilidade; mas um dia quem sabe, decifrarei os mistérios, como este: quando o sol acende/ os cristais que a chuva/ pendurou na teia; ou este outro: dentro da papoula/ o pirilampo apaga a / lâmpada de fada.
E por último Sol de feira, de 1973, ah, esse é o que me leva a caminhos tão distantes. Através dele, fui também tripulante da viagem de Vasco da Gama em Os Lusíadas, e consegui fazer parte da viagem entrando pelo “rondel do limão”: chega o limão/ ácido e raro/ seivoso e claro/ como o verão /o poeta di-lo/ cúpido e ardente/ túmido e olente/ verde mamilo// na toalha branca/de mesa parca/ seu brando grumo/ empresta ao sal/ fino o cristal/ do fresco sumo. E o que dizer do “rondel da goiaba”: teu verde fruto/ entre a folhagem/ se denuncia/ pelo perfume,/ o doce sumo/ de tua polpa/ lembra a saliva/ de uma cabocla (...). Esses são alguns dos rondéis que há no Sol de feira, e foram dois dos quais trabalhei para o III Colóquio Poéticas do Imaginário, da UEA, de 2012.  Do clássico Camões  à cabocla de sua terra, como nenhum outro, Luiz Bacellar é o poeta do mundo, pela sua sabedoria, delicadeza e maestria.  Deixou para nós um legado vasto, cabe a nós aproveitá-lo para tentar compreender a mente de um poeta que fez de uma simples fruta, uma jóia para a poesia.  O que esperar, agora que ele partiu? Pela sensibilidade de sua obra, que seus versos ecoem por vales e montanhas e seu nome seja lembrado por muitas e muitas gerações.
Quando a visita acabava, eu voltava para casa feliz e triste. Triste por ele estar ali, e feliz, por ele ceder-me uma hora da sua nobre companhia.  Com um travo na garganta, socorro-me de Walt Whitman: Oh capitão! Meu capitão! Nossa jornada medonha terminou. Entretanto, sei que, como a Fênix, ele ressurge em outras plagas.

(Publicado originalmente na revista Amazonas Educação.)