Amigos do Fingidor

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Academia Nacional de Cirurgia, em Paris


João Bosco Botelho

As tradições acadêmicas da medicina cirúrgica, na França, estão tão plenas de histórias de longa duração, ancorando novas técnicas, para obter melhores resultados, que em determinados momentos é possível identificar o quanto as cirurgias praticadas no mundo estão ligadas às publicações francesas.
A busca pela qualidade do procedimento cirúrgico se tornou muito mais persistente após a Revolução Francesa, ao abolir, para sempre, a perversidade autoritária que caracterizava a realeza daqueles tempos: "Je suis le Roi; je peux faire tout!" (Eu sou o rei, eu posso fazer tudo!). Esse extraordinário avanço nas relações sociopolíticas chegou às universidades em plena ascensão. Professores e alunos reaprenderam que ninguém é dono da universidade!
A história da Academia Nacional de Cirurgia começou em 1731, com o projeto dos cirurgiões-do-reino George Mareschal e François Peyronie apresentado ao rei Luís XV, sendo criada por Édito Real a Academia Real dos Cirurgiões. Após longas negociações com os padres franciscanos, o convento "Des Cordeliers", na rue de l'École, se tornou a sede, onde se mantém até os dias atuais.
Na realidade, a escolha dos cirurgiões para que a sede "Des Cordeliers", situada na rue de l'École, ficasse sob a guarda dos cirurgiões não foi por mero acaso: ao longo dessa rua, entre os séculos 14 e 15, existiram vários pequenos anfiteatros, onde os médicos romperam, corajosamente, enfrentado as autoridades eclesiásticas e a guarda do Rei, as proibições de estudar a anatomia humana, durante dez séculos proibida pela Igreja.
Inserido no contexto histórico das liberdades que regem os destinos das universidades, desde as primeiras, fundadas no século 12, como a Universidade de Paris, a Academia Real de Cirurgiões valorizou a produção científica em detrimento das indicações políticas, alicerçando os pilares da França com o baluarte das liberdades. Por essa razão, no primeiro estatuto da Academia, valendo até hoje, reza no artigo 12: "Serão recebidos com honras os cirurgiões dos países estrangeiros que mais se distinguirem na arte da cirurgia".
Nos meses que antecederam a Revolução Francesa, tanto na sede da Academia quanto nas ruas estreitas do Quartier Latin, no lado esquerdo do rio Sena, na proximidade da catedral de Notre Dame, onde moravam as pessoas pobres, os cirurgiões recusaram os presentes oferecidos pelos administradores do rei, que pensavam poder fazer tudo na universidade; os cirurgiões se reuniam para conspirar contra o rei.   
O Quartier Latin recebeu essa denominação porque os espiões do rei, que falavam o antigo dialeto franciano, não compreendiam o latim, a língua erudita corrente entre os poucos escolarizados. Mesmo com esses cuidados, muitos cirurgiões que recusavam os presentes foram assassinados.
Os sobreviventes se sentaram ao lado dos revolucionários, em especial, Danton e Robespierre, na sede "Des Cordeliers". Esses homens especiais, que resistiram viram a vitória da Revolução Francesa, a morte na guilhotina do rei Luis XVI e a dos que ofereceram presentes, a aprovação da "Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão" e a edição dos princípios máximos da cultura ocidental:  "Liberdade, Igualdade e Fraternidade".
Imediatamente após a Revolução Francesa, as universidades iniciaram o processo de abominar qualquer pessoa que possa pensar como "Eu sou o rei! Eu posso fazer tudo! Eu ofereço presentes!"