João
Bosco Botelho
As tradições acadêmicas da
medicina cirúrgica, na França, estão tão plenas de histórias de longa duração, ancorando
novas técnicas, para obter melhores resultados, que em determinados momentos é
possível identificar o quanto as cirurgias praticadas no mundo estão ligadas às
publicações francesas.
A busca pela qualidade do
procedimento cirúrgico se tornou muito mais persistente após a Revolução
Francesa, ao abolir, para sempre, a perversidade autoritária que caracterizava
a realeza daqueles tempos: "Je suis le Roi; je peux faire tout!" (Eu
sou o rei, eu posso fazer tudo!). Esse extraordinário avanço nas relações
sociopolíticas chegou às universidades em plena ascensão. Professores e alunos
reaprenderam que ninguém é dono da universidade!
A história da Academia Nacional de Cirurgia começou em 1731,
com o projeto dos cirurgiões-do-reino George Mareschal e François Peyronie
apresentado ao rei Luís XV, sendo criada por Édito Real a Academia Real dos
Cirurgiões. Após longas negociações com os padres franciscanos, o convento
"Des Cordeliers", na rue de l'École, se tornou a sede, onde se mantém
até os dias atuais.
Na realidade, a escolha dos
cirurgiões para que a sede "Des Cordeliers", situada na rue de l'École,
ficasse sob a guarda dos cirurgiões não foi por mero acaso: ao longo dessa rua,
entre os séculos 14 e 15, existiram vários pequenos anfiteatros, onde os
médicos romperam, corajosamente, enfrentado as autoridades eclesiásticas e a
guarda do Rei, as proibições de estudar a anatomia humana, durante dez séculos
proibida pela Igreja.
Inserido no contexto histórico
das liberdades que regem os destinos das universidades, desde as primeiras,
fundadas no século 12, como a Universidade de Paris, a Academia Real de
Cirurgiões valorizou a produção científica em detrimento das indicações
políticas, alicerçando os pilares da França com o baluarte das liberdades. Por
essa razão, no primeiro estatuto da Academia, valendo até hoje, reza no artigo
12: "Serão recebidos com honras os cirurgiões dos países estrangeiros que
mais se distinguirem na arte da cirurgia".
Nos meses que antecederam a
Revolução Francesa, tanto na sede da Academia quanto nas ruas estreitas do
Quartier Latin, no lado esquerdo do rio Sena, na proximidade da catedral de Notre
Dame, onde moravam as pessoas pobres, os cirurgiões recusaram os presentes
oferecidos pelos administradores do rei, que pensavam poder fazer tudo na
universidade; os cirurgiões se reuniam para conspirar contra o rei.
O Quartier Latin recebeu essa
denominação porque os espiões do rei, que falavam o antigo dialeto franciano,
não compreendiam o latim, a língua erudita corrente entre os poucos
escolarizados. Mesmo com esses cuidados, muitos cirurgiões que recusavam os
presentes foram assassinados.
Os sobreviventes se sentaram
ao lado dos revolucionários, em especial, Danton e Robespierre, na sede
"Des Cordeliers". Esses homens especiais, que resistiram viram a
vitória da Revolução Francesa, a morte na guilhotina do rei Luis XVI e a dos que
ofereceram presentes, a aprovação da "Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão" e a edição dos princípios
máximos da cultura ocidental: "Liberdade, Igualdade e
Fraternidade".
Imediatamente após a Revolução
Francesa, as universidades iniciaram o processo de abominar qualquer pessoa que
possa pensar como "Eu sou o rei! Eu posso fazer tudo! Eu ofereço
presentes!"