João Bosco Botelho
As
idéias oitocentistas, provavelmente incentivadas pela fisiologia experimental
presente nos trabalhos de Claude Bernard, aprumaram a ciência na tarefa de
explicar como funcionava o corpo, quase sempre associando aos avanços da técnica.
O pleno exagero do mecanismo coube às palavras do pensador La Mettrie, em 1748,
que conduziu a mecanização do corpo ao limite máximo.
No
início do século 19, essa compreensão se manteve. Ao contrário, com a industrialização
impondo as linhas de montagem e a necessidade rápida de mão-de-obra, os corpos
tornaram-se complementos das máquinas.
O
mecanicismo trouxe um impressionante conjunto metafórico à linguagem: o coração
passou a ser a bomba; o pulmão, o fole; o rim, o filtro, e, finalmente, o
cérebro, o computador.
Do mesmo modo, não é demais repetir que os
reflexos sobre as mudanças na formação do médico não tardariam. Em 1910, o Relatório
Flexner, nos Estados Unidos e na Europa, foi um instrumento para reorganizar as
faculdades de Medicina. A metodologia acadêmica em torno dos valores da cura,
mais do que nunca na História, valorizaria exclusivamente a Medicina ligada à
técnica, aos laboratórios, desprezando os componentes sociais das doenças.
Essa
linha metodológica chegou ao apogeu com Talcott Parsons, em 1951, sob a guarda
das faculdades de Medicina, de modo semelhante às crenças e às idéias religiosas,
ao sustentar que as enfermidades deveriam ser compreendidas como significantes
de desvio social. A coesão social só poderia ser alcançada com o controle das
doenças, mas sob a estreita supervisão do agente da Medicina – o médico. Essa
foi a época do maior prestigio social do médico: agente absoluto da saúde, do
bem, do belo!
É
evidente que o estudo de Parsons só poderia ser aplicado em alguns segmentos
sociais, nos países industrializados, com grandes recursos disponíveis para
pagar os serviços de saúde.
Do
mesmo modo como a concepção da saúde atada exclusivamente ao social, a aplicação
dessa Medicina mecanicista é questionável, na maior parte da população mundial,
onde as dificuldades da sobrevivência básica impedem o acesso aos hospitais.
Essa imensa parcela populacional desassistida continua recorrendo aos curadores
populares para resolver os problemas da saúde.
Desse
modo, a prática médica nos países do Terceiro Mundo, desde os anos sessenta, impregnada
pelas teorizações de Flexner e Parsons, empurrou os trabalhos acadêmicos para
valorizar a doença como fruto da injustiça social, oferecendo a máquina, a
tecnologia, como solução para prolongar e empurrar os limites da morte temida.
Mesmo com
a maior questão dos saberes médicos não estando resolvida, especialmente o
paradoxo fundamental – em qual dimensão da matéria viva a doença substitui o
normal? –, os médicos seduzidos pelo tecnicismo exacerbado acreditam,
perigosamente, na infalibilidade da Medicina e distanciam-se do doente. As
ordens médicas vindas da doutrina flexneriana se portam de maneira impessoal e
a demonstração de sentimentos, junto ao leito do enfermo, é interpretada como
sinônimo de incompetência.
A busca
da cura, ancestralmente presente à cabeceira do doente junto ao médico-amigo, não
tem lugar nas propostas de Flexner e Parsons.
A
resistência a esse modelo trouxe às universidades outras abordagens dos
tratamentos, contrários à tendência mecanicista, com a convicção de nada
substituir a relação médico-paciente humanizada.