João Bosco Botelho
Fica impossível separar a História da Medicina
do conjunto dos saberes, desde os tempos mais distantes, das crenças e ideias
religiosas que englobam as concepções míticas em torno da cura ou, na maior
parte das vezes, somente a esperança de cura, como o permanente fio condutor para
vencer a dor e empurrar os limites da vida.
Sob essa perspectiva, as técnicas da Medicina
compõem instrumentos também para desvendar os efeitos pessoais e coletivos
causados pela dor ou, simplesmente, pela ameaça dolorosa. Assim, os recursos e
as variantes simbólicas para enfrentar a dor e buscar o prazer, em qualquer
cultura-linguagem, tanto no espaço sagrado quanto no profano das relações
sociais, também compõem a História da Medicina
De igual modo, não há como separar a contínua e
ancestral luta contra a dor presente nas idéias e crenças religiosas, já que em
determinados momentos, não se sabe onde começa a Medicina e terminam as
religiões.
Em última análise, essa condição ontogenética
da luta contra a dor e a permanente busca do prazer possibilitou a
sobrevivência e a reprodução da espécie humana, compondo a organização social
prevalente no planeta.
A
saúde significa não-dor e o contrário também é verdadeiro: a doença está
associada à dor ou à ameaça dolorosa e à morte prematura. Logo, o normal pode
ser compreendido como um parâmetro da saúde onde o indivíduo vive sem dor ou
sem a ameaça dolorosa e, assim, estaria livre da morte prematura. Essa sensação
de segurança pessoal e coletiva contra a morte inevitável constitui um dos
principais alicerces da organização social.
As
linguagens-culturas têm sido os principais instrumentos para consolidar essa
característica comportamental humana. A linguagem, em si mesma, foi estruturada
para dar realidade à expressão da dor e do prazer, respectivamente, concretizando
a compreensão da doença e do normal.
É por
meio da linguagem que o normal e a doença se expõem pessoal e coletivamente.
Por essas razões, os instrumentos biológicos da linguagem interagem e codificam
a cooperação, a territorialidade e a sexualidade para vencer a dor e empurrar
os limites da vida. A doença, sempre real para quem a sente, é verbalizada em
torno da dor ou do medo da morte.
A eliminação da dor e a substituição pelo
prazer, interligando a cooperação, a sexualidade e a territorialidade, tornaram-se
o determinismo genético, garantindo a sobrevivência da espécie.
O reducionismo cientificista tem projetado a
Medicina, aquela oriunda das antigas escolas médicas, como a única responsável
por esse processo de luta contra a dor. Contudo, repetindo, em muitos momentos,
não é possível distinguir onde começa essa Medicina, e os conhecimentos historicamente
acumulados, e onde terminam as ideias e crenças religiosas.
Os historiadores que desvendam os períodos
ágrafos se esforçam para elaborar estruturas teóricas capazes de explicar como
os nossos antepassados distantes entendiam e modelavam a saúde e a doença, a
vida e a morte, de modo semelhante, durante os milhares de anos que antecederam
o aparecimento da escrita.
Muitos aspectos dessa construção estão contidos
nos estudos dos fósseis, por meio da paleopatologia e os recursos da
arqueologia, e constituem alternativas capazes de oferecer aspectos importantes
para continuar elucidando as incontáveis dúvidas de como a espécie se
relacionou com a dor e a morte: pinturas rupestres, vestígios do uso do fogo
nas paredes das cavernas, as sepulturas rituais, os fragmentos ósseos pintados
com ocra vermelha, ferramentas e utensílios de caça e pesca e vestígios fósseis
da ação do homem sobre o homem.