Amigos do Fingidor

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Relações da medicina com ideias e crenças religiosas



João Bosco Botelho

Fica impossível separar a História da Medicina do conjunto dos saberes, desde os tempos mais distantes, das crenças e ideias religiosas que englobam as concepções míticas em torno da cura ou, na maior parte das vezes, somente a esperança de cura, como o permanente fio condutor para vencer a dor e empurrar os limites da vida.
Sob essa perspectiva, as técnicas da Medicina compõem instrumentos também para desvendar os efeitos pessoais e coletivos causados pela dor ou, simplesmente, pela ameaça dolorosa. Assim, os recursos e as variantes simbólicas para enfrentar a dor e buscar o prazer, em qualquer cultura-linguagem, tanto no espaço sagrado quanto no profano das relações sociais, também compõem a História da Medicina
De igual modo, não há como separar a contínua e ancestral luta contra a dor presente nas idéias e crenças religiosas, já que em determinados momentos, não se sabe onde começa a Medicina e terminam as religiões.
Em última análise, essa condição ontogenética da luta contra a dor e a permanente busca do prazer possibilitou a sobrevivência e a reprodução da espécie humana, compondo a organização social prevalente no planeta.
A saúde significa não-dor e o contrário também é verdadeiro: a doença está associada à dor ou à ameaça dolorosa e à morte prematura. Logo, o normal pode ser compreendido como um parâmetro da saúde onde o indivíduo vive sem dor ou sem a ameaça dolorosa e, assim, estaria livre da morte prematura. Essa sensação de segurança pessoal e coletiva contra a morte inevitável constitui um dos principais alicerces da organização social.
As linguagens-culturas têm sido os principais instrumentos para consolidar essa característica comportamental humana. A linguagem, em si mesma, foi estruturada para dar realidade à expressão da dor e do prazer, respectivamente, concretizando a compreensão da doença e do normal.
É por meio da linguagem que o normal e a doença se expõem pessoal e coletivamente. Por essas razões, os instrumentos biológicos da linguagem interagem e codificam a cooperação, a territorialidade e a sexualidade para vencer a dor e empurrar os limites da vida. A doença, sempre real para quem a sente, é verbalizada em torno da dor ou do medo da morte.
A eliminação da dor e a substituição pelo prazer, interligando a cooperação, a sexualidade e a territorialidade, tornaram-se o determinismo genético, garantindo a sobrevivência da espécie.
O reducionismo cientificista tem projetado a Medicina, aquela oriunda das antigas escolas médicas, como a única responsável por esse processo de luta contra a dor. Contudo, repetindo, em muitos momentos, não é possível distinguir onde começa essa Medicina, e os conhecimentos historicamente acumulados, e onde terminam as ideias e crenças religiosas.
Os historiadores que desvendam os períodos ágrafos se esforçam para elaborar estruturas teóricas capazes de explicar como os nossos antepassados distantes entendiam e modelavam a saúde e a doença, a vida e a morte, de modo semelhante, durante os milhares de anos que antecederam o aparecimento da escrita.

Muitos aspectos dessa construção estão contidos nos estudos dos fósseis, por meio da paleopatologia e os recursos da arqueologia, e constituem alternativas capazes de oferecer aspectos importantes para continuar elucidando as incontáveis dúvidas de como a espécie se relacionou com a dor e a morte: pinturas rupestres, vestígios do uso do fogo nas paredes das cavernas, as sepulturas rituais, os fragmentos ósseos pintados com ocra vermelha, ferramentas e utensílios de caça e pesca e vestígios fósseis da ação do homem sobre o homem.