Paulo Sérgio Medeiros
São exatamente três horas da manhã quando a fragilidade do silêncio é
quebrada na casa 211 da pacata Santa Quitéria, com os gritos histéricos do
telefone posicionado na estante da sala de estar. Toques sucessivos com ar
de urgência e um hediondo aroma de tragédia, toques daqueles de dizimar até a
paciência de Jó.
Seu Isaac acorda aturdido e balbucia algumas palavras incompreensíveis
como quem tem um bob de cabelo enrolado na língua e levanta-se muito amuado da
rede de punhos puídos. Sempre que tomava seus pileques abria mão de dormir na
cama de casal. Era embalado na rede que ele curava suas dores de cabeça ainda
que com carapanãs lixando seus ouvidos.
Isaac era do tipo que não gostava de atender os telefonemas nem dos
próprios filhos, que dirá um trote de algum desalmado na taciturna noite de
dezoito de outubro – dia comemorado como marco da resistência à morte
inevitável. Os filhos há algum tempo já nem telefonavam mais para o velho, pois
as chances de ouvirem poucas e boas eram de proporções homéricas.
Paulatinamente, Isaac levantara muralhas em sua volta e cavara um fosso levando
essa animosidade ao aparato tecnológico a osteoporose de seus relacionamentos
familiares. Mas num súbito momento de sobriedade lembrou-se do filho caçula,
recém integrado à polícia federal e que estava em missão em Tabatinga.
O envelhecimento dos tecidos já pesava naquela carcaça óssea de
setenta e três julhos, com alguns remanescentes cabelos grisalhos e uma ressaca
dionisíaca, lá foi ele desnudo pelo corredor inóspito rumo ao aparelho
telefônico. Nunca Alexander Graham Bell foi tão xingado por tal invenção.
Alô? Judeu? Só pessoas muito íntimas o chamavam por esse
apelido colocado por ele mesmo. Mas nem a voz lasciva e o tom de intimidade do
outro lado da linha o derreteram.
Isso é hora de telefonar pra casa dos outros? O que é? Foi
logo fazendo jus à fama de tolerante zero. Queria voltar o quanto antes para
rede de punhos puídos e hibernar por dias, se possível.
Sabe quem está falando? Não. Respondeu assim, seco e lacônico. Já estive
em sua casa uma vez e fui muito bem servida. Lembras? Isaac resolveu dar voz ao
seu desconhecido lado Pollyanna. Sentou-se no sofá e continuou com a conversa
fiada. Me perdoe, mas não lembro não, minha princesa. Isaac chamava todas as
mulheres de princesa. Eu sou a General das Trevas.
Zuleide tem o sono sacudido pelo frio insuportável e ao levantar as
pálpebras percebe a porta do quarto entreaberta e não vê seu companheiro à
cabeceira. Aquela frente fria castigava a extensão do inferno, como era mais
conhecida a cidade de Manaus.
Isaac? Isaac? Sem obter resposta foi o jeito levantar-se. Mas sem o par
de óculos não chegaria a lugar algum. Zuleide vai tateando sobre a penteadeira
com uma cautela que lhe é peculiar até derrubar o terço de madeira antes de
triscar nos seus olhos de vidro. Dona Zuleide, de dogmas religiosos muito
sólidos, não ia para cama sem antes rezar todo o terço do Rosário.
General das Trevas? Bom, não me venha com metáforas a essa hora da
noite. Seja sucinta e direta. Eu sou a morte e vou aí te buscar. Uma
rasga-mortalha pia ironicamente sobre o telhado úmido.
Houve um silêncio. Depois uma gargalhada. A conversa já durava um quarto
de hora.
Ah, és tu então sua vagabunda. Se por aqui quiseres aparecer de novo,
gostaria que tu viesses desprovida de roupas íntimas. E quando eu deitar minhas
coxas entre as tuas sentirás que o buraco aqui é literalmente mais embaixo.
Zuleide a poucos metros dali com o terço nas mãos e os olhos pousados
naquele homem nu foi se embriagando com aqueles sussurros temperados de
promiscuidade que o silêncio permitia-lhe ouvir. Aproximou-se de Isaac, colocou
o terço em volta do seu pescoço, cobriu-lhe o corpo com a mortalha do amor e
voltou a dormir na espera da morte que insistia em não desligar.