Amigos do Fingidor

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Ela pode esperar...


  
Paulo Sérgio Medeiros
        
                             
São exatamente três horas da manhã quando a fragilidade do silêncio é quebrada na casa 211 da pacata Santa Quitéria, com os gritos histéricos do telefone posicionado na estante da sala de estar. Toques sucessivos com ar de urgência e um hediondo aroma de tragédia, toques daqueles de dizimar até a paciência de Jó.
Seu Isaac acorda aturdido e balbucia algumas palavras incompreensíveis como quem tem um bob de cabelo enrolado na língua e levanta-se muito amuado da rede de punhos puídos. Sempre que tomava seus pileques abria mão de dormir na cama de casal. Era embalado na rede que ele curava suas dores de cabeça ainda que com carapanãs lixando seus ouvidos.
Isaac era do tipo que não gostava de atender os telefonemas nem dos próprios filhos, que dirá um trote de algum desalmado na taciturna noite de dezoito de outubro – dia comemorado como marco da resistência à morte inevitável. Os filhos há algum tempo já nem telefonavam mais para o velho, pois as chances de ouvirem poucas e boas eram de proporções homéricas. Paulatinamente, Isaac levantara muralhas em sua volta e cavara um fosso levando essa animosidade ao aparato tecnológico a osteoporose de seus relacionamentos familiares. Mas num súbito momento de sobriedade lembrou-se do filho caçula, recém integrado à polícia federal e que estava em missão em Tabatinga.
 O envelhecimento dos tecidos já pesava naquela carcaça óssea de setenta e três julhos, com alguns remanescentes cabelos grisalhos e uma ressaca dionisíaca, lá foi ele desnudo pelo corredor inóspito rumo ao aparelho telefônico. Nunca Alexander Graham Bell foi tão xingado por tal invenção.
Alô? Judeu? Só pessoas muito íntimas o chamavam por esse apelido colocado por ele mesmo. Mas nem a voz lasciva e o tom de intimidade do outro lado da linha o derreteram.
Isso é hora de telefonar pra casa dos outros? O que é? Foi logo fazendo jus à fama de tolerante zero. Queria voltar o quanto antes para rede de punhos puídos e hibernar por dias, se possível.
Sabe quem está falando? Não. Respondeu assim, seco e lacônico. Já estive em sua casa uma vez e fui muito bem servida. Lembras? Isaac resolveu dar voz ao seu desconhecido lado Pollyanna. Sentou-se no sofá e continuou com a conversa fiada. Me perdoe, mas não lembro não, minha princesa. Isaac chamava todas as mulheres de princesa. Eu sou a General das Trevas.
Zuleide tem o sono sacudido pelo frio insuportável e ao levantar as pálpebras percebe a porta do quarto entreaberta e não vê seu companheiro à cabeceira. Aquela frente fria castigava a extensão do inferno, como era mais conhecida a cidade de Manaus.
Isaac? Isaac? Sem obter resposta foi o jeito levantar-se. Mas sem o par de óculos não chegaria a lugar algum. Zuleide vai tateando sobre a penteadeira com uma cautela que lhe é peculiar até derrubar o terço de madeira antes de triscar nos seus olhos de vidro. Dona Zuleide, de dogmas religiosos muito sólidos, não ia para cama sem antes rezar todo o terço do Rosário.
General das Trevas? Bom, não me venha com metáforas a essa hora da noite. Seja sucinta e direta. Eu sou a morte e vou aí te buscar. Uma rasga-mortalha pia ironicamente sobre o telhado úmido.
Houve um silêncio. Depois uma gargalhada. A conversa já durava um quarto de hora.
Ah, és tu então sua vagabunda. Se por aqui quiseres aparecer de novo, gostaria que tu viesses desprovida de roupas íntimas. E quando eu deitar minhas coxas entre as tuas sentirás que o buraco aqui é literalmente mais embaixo.
Zuleide a poucos metros dali com o terço nas mãos e os olhos pousados naquele homem nu foi se embriagando com aqueles sussurros temperados de promiscuidade que o silêncio permitia-lhe ouvir. Aproximou-se de Isaac, colocou o terço em volta do seu pescoço, cobriu-lhe o corpo com a mortalha do amor e voltou a dormir na espera da morte que insistia em não desligar.