Tenório Telles
No
poema “Morte e vida severina”, João Cabral de Melo Neto escreveu alguns dos
versos mais intensos da nossa literatura. Trata-se da parte final de seu
célebre texto: “Severino, retirante, / deixe agora que lhe diga: / eu não sei
bem a resposta / da pergunta que fazia, / se não vale mais saltar / fora da
ponte e da vida; / [...] mas se responder não pude / à pergunta que fazia, /
ela, a vida, a respondeu / com sua presença viva. / E não há melhor resposta / que
o espetáculo da vida: / vê-la desfiar seu fio, / que também se chama vida, / ver
a fábrica que ela mesma, / teimosamente, se fabrica, / vê-la brotar como há
pouco / em nova vida explodida...”. Não se passa incólume pela leitura dessa
obra-prima do poeta pernambucano. Décadas se passaram do meu encontro com este
poema – e ele continua ressoando e relembrando a lição que o funda: tudo se
resolve dentro da vida – e não há como fugir aos seus desígnios e nenhuma força
é maior que o impulso da vida.
Pensando
esses dias sobre o fechamento da Livraria Valer, os versos de João Cabral
afloraram em minha lembrança. Um em particular: a vida sempre responde a tudo
“com sua presença viva”. Relembrei
tantas vivências dos anos que estive à frente da Editora: tanta luta, tantas
incompreensões e tanta maldade que tivemos de enfrentar para nos mantermos de
pé e realizar nossa missão. Só o sonho e a convicção de estar comprometido com
uma boa causa sustenta um ser humano nos seus embates cotidianos. Ingênuo, em
1996 assumi a coordenação editorial acreditando que os poetas, os intelectuais
e os homens que defendiam o discurso da mudança do mundo eram bons e generosos.
Não considerei a velha lição de que não são as palavras que definem um homem,
mas seus atos. Eu também me iludi com as belas palavras e os belos discursos.
Bastaram
os lançamentos dos primeiros livros, das coleções de literatura e história, a
realização dos lançamentos e eventos, especialmente a “Quarta Literária”, para
que se iniciasse uma torrente de agressões, infâmias e mesquinharias. Foi,
então, que aprendi que em Manaus o trabalho incomoda. Desperta inveja, rancor e
agressões. Alguns nos acusaram de sermos “laranja” de um ex-governador de
estado, com o qual não tínhamos contato. Outros, que fazíamos negócios escusos.
Chegaram ao absurdo de afirmar que comandávamos uma lavanderia de dinheiro
ilícito. Enfrentei muitos embates desfazendo essas maledicências e tentando
explicar que o que nos movia era o desejo de contribuir com o processo cultural
de Manaus e ajudar a formar leitores, resgatar as obras importantes da
literatura regional e incentivar a publicação de novos escritores. Esses
argumentos não convenceram as almas sebosas que vivem de espalhar cizânia e
promover dissensões. Essas coisas cansam. E essa era a intenção dos ataques:
minar nossa resistência, desconcentrar, dividir e enfraquecer.
Quando
uma calúnia se esvaziava, outra era engendrada e disseminada. Durante anos, um
grupo de autores se reuniu para maldizer a vida alheia e alimentar essa
corrente de intrigas com o objetivo de interditar e sabotar qualquer movimento
que pusesse em risco a suposta hegemonia que imaginavam ter no processo
cultural. Para atingir seu intento recorriam a ofensas pessoais, preconceito de
gênero e à desqualificação intelectual. Chegaram ao cúmulo de eleger um
psicopata para uma entidade representativa com o intuito de usá-lo para atacar
seus oponentes. Um dos alvos dessa criatura rancorosa e má foi a Editora Valer.
Passou anos atacando, maldizendo, forjando dossiês, fazendo acusações
infundadas, e que cometíamos o pecado imperdoável de ganharmos dinheiro com a
literatura. Bem que esse pecado poderia ter se consumado – teríamos tido
condições de fazer muito mais pelo livro e pela leitura no Amazonas.
Tive dificuldade em entender o porquê de
tanta agressividade. Não tinha convivência com essa criatura, nunca lhe fizera
mal. A inveja e o ressentimento eram as explicações para tal comportamento. Ele
não suportava o fato de uma outra pessoa, e não ele, estar realizando o
trabalho de produção de livros e animação cultural que fazíamos. Por isso virei
seu alvo. Foi mais de uma década de agressões e intrigas. E assim me tornei um
agente do neoliberalismo na cultura amazonense. Um capitalista voraz do mundo
editorial. O trágico de tudo isso é que algumas pessoas davam crédito a toda
essa insanidade e davam força para que ele continuasse. As coisas descambaram
para a violência: tomei posse na Academia de Letras sob ameaça de bomba. Essa
experiência me ensinou que precisamos ter cuidado com os ressentidos – são
seres frustrados que se comprazem em causar sofrimento aos que personificam
aquilo que gostariam de ser.
A história da Valer me ensinou que todo
processo cultural é político – e que na sociedade trava-se um embate pelo
controle da cultura. Nesse aspecto, as atividades artísticas realizadas pela
Valer foram um incômodo para algumas autoridades públicas que têm uma visão
exclusivista e autoritária das ações de cultura. Acreditam que só eles podem
empreender e quem ousar fazer algo nessa seara é alvo de interdição, boicotes e
ameaças. A cultura, nesta sociedade, não é o espaço da civilização. É na
cultura que a barbárie se manifesta de forma cruel, velada. O dramático do
embate contra o poder instituído é que a luta é desigual: como enfrentar uma
força que detém os meios para destruir quem o ameaça? Que coopta e compra as
pessoas da sua conveniência? Essa história foi tão surreal que se chegou ao
absurdo de tentar desapropriar o prédio onde funcionava a Valer. Iniciou-se um processo,
pasmem, com o parecer favorável de um conhecido jornalista e colunista social,
que só não se efetivou porque recorremos a diversas autoridades que
intercederam e o documento foi arquivado. Um momento dramático foi quando
invadiram o escritório da Editora e furtaram HD’s e “pen drivers” com arquivos
de trabalho. Não escapamos igualmente das intrigas palacianas: inúmeras vezes
tentaram criar indisposição com o chefe do executivo estadual. O problema é que
nos subestimávamos: não acreditávamos que o que fazíamos pudesse incomodar
politicamente. Foi mais um dos nossos muitos enganos. O fato é que fomos salvos
das possíveis represálias do poder pela interferência de muitos protetores, pessoas
solidárias com o nosso trabalho que intercederam e ajudaram a desfazer
equívocos e intrigas.
Essa história é reveladora da ambiguidade de
todo processo humano: toda experiência tem um plano visível e outro que se
desenrola subliminarmente. E é no segundo que a vida se decide. Um dia talvez
essa história seja contada. A Livraria Valer encerrou seu ciclo de forma digna:
Isaac Maciel, seu criador, assumiu com coragem a decisão de encerrar essa
história. Foi o último a sair, no dia 8 de novembro de 2015, às 18h30. Volto a
João Cabral: “E não há melhor resposta / que o espetáculo da vida: [...] / vê-la
brotar como há pouco / em nova vida explodida...”.