Amigos do Fingidor

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Tabaco: o sagrado e o profano em torno da fumaça – 1/6

João Bosco Botelho*

NO ESPAÇO SAGRADO

Os caraíbas (pajés)... tomavam uma vara de madeira de quatro a cinco pés de comprimento em cuja extremidade ardia um chumaço de petun (tabaco) e voltavam‑na acesa para todos os lados soprando a fumaça contra os selvagens e dizendo: para que vençais os vossos inimigos recebei o espírito da força.
(Jean de Léry, sacerdote calvinista, no Rio de Janeiro, em 1556, Viagem à Terra do Brasil).

Desde os primeiro registros, existem fartas referências à crença no poder da fumaça como instrumento de cura. Esse aspecto das relações sociais não pode ser simples coincidência porque ainda estão presentes no imaginário mítico de povos distantes milhares de quilômetros entre si e sem contato interétnico(1).

Ao contrário do fogo, a fumaça pode ser possuída por quem a aspira. Logo, aquele que a aprisiona e oferece ao grupo social um sentido coerente da direção tomada sob o impulso do sopro, libertando-a, recebe destaque no grupo. É possível que exista relação entre essa possibilidade, atada ao fogo domesticado, e a origem mítica do poder curador da fumaça.

Os registros da arqueologia apontam para a evidência de que a sobrevivência dos nossos ancestrais distantes dependeu da produção, conservação e do transporte do fogo(2). Desse modo, o controle do fogo não só atenuou o ambiente hostil, mas deve ter contribuído para formar novos sentimentos abstratos(3), reforçando as diferenças com os outros animais.

Nada nos impede de imaginar o óbvio do quanto representou aos nossos distantes antepassados terem o conforto dos corpos aqueci­dos pelo calor da fogueira e a visão enigmática dos rolos de fumaça subindo aos céus, nas noites de inverno congelante.

A angústia vivenciada para dar sentido escatológico à vida, no espaço sagrado, está abarrotada dos vestígios da antiga relação mágica do fogo-fumaça.

O complexo processo sincrético elaborado nas memórias pessoais e coletivas, acumulado na ontogênese, comporta questões ainda não resolvidas pela genética.

Para superar esses estorvos, é possível teorizar que o genoma humano não trate somente das questões físicas do processo de humanização(4). Existiriam caminhos integrando respostas neurofisiológicas acolhedoras – memória-sócio-genética - quando o indivíduo ou o grupo identificam situações circunstanciais que geram conforto e segurança.

Apesar das dificuldades, é possível resgatar alguns traços marcantes desse passado compartilha­do envolvendo o fogo e a fumaça.

Restringindo a análise aos lugares onde proliferaram os mais antigos núcleos do pensamento religioso(5), é possível conferir como ainda é forte, no patrimônio cultural de muitas culturas, o sentido simbólico da fumaça aderido às idéias e crenças religiosas(6): a fumaça incorporou o sentido de ponte entre a terra e o céu.

Na China antiga e no Tibet, ao som das músicas santas, a fumaça tinha a função de conduzir a alma para outro espaço, onde só os escolhidos tinham acesso. Para os taoístas, a queima dos juncos e caniços tinha significado purificador tão importante quanto os da água e do fogo, compreendidos como elementos fundamentais da natureza.

A importância do fogo também é muito expressiva no hinduísmo(7). Agni, Indra e Surya são os fogos dos mundos: terres­tre, intermediário e celeste. O I Ching(8) analisa o fogo no hexagra­ma formado por dois trigramas Li que significa aderir a algo, ser condicionado, depender de algo e claridade. O Atharva Veda, um dos quatro Vedas, atribuiu ao deus Agni o poder purificador: O deus Agni escalou os cimos celes­tiais, e, ao libertar‑se do pecado, ele nos libertou da maldição.

O Antigo Testamento não só registrou a cidade de Sabá como o lugar de onde era extraído o melhor vegetal para ser queimado e servir de incenso(9,10,11) como também comparou o cheiro agradável ao perfume sagrado(12) e descreveu como era usado nos sacrifícios rituais(13).

O panteão grego ao incorporar as mais expressivas manifestações das culturas da antiguidade, ofereceu lugar de destaque ao deus do fogo no panteão do Olimpo – Hefesto – filho de Zeus e de Hera(14). Como Agni, também nasceu nas águas ce­lestes.

A mitopoese grega atribuiu a Hefesto a capa­cidade de curar, matar e perseguir graças ao poder de atar e desatar os nós(15). As festas em sua honra, sempre concorridas, o apresentavam como protetor da lareira e da família.
(Continua amanhã.)

Bibliografia

1. ELIADE, Mircea. História das crenças e das idéias religio­sas. 2. ed. Rio de Janeiro. Zahar. 1983. t.1. v.1. p. 20.
2. BRONOWSKI, J. A escalada do homem. Brasília. Ed. Universi­dade de Brasília. 1983. p. 124:
3. CLARKE, Robert. O nascimento do homem. Lisboa. Gradiva. 1980. p. 72.
4. BOTELHO, João Bosco. Arqueologia do prazer. Manaus. Metro Cúbico. 1993. p. 1-46
5. BIAR­DEAU, Madeleine. As filosofias da India. In: PARAIN, Brice, dir. História da filosofia. 11. ed. Madri. Siglo Veintiuno Ed. 1986. v. 1. p. 78‑90.
6. JUNG, C. G. Psicologia da religião ocidental e oriental. Petrópolis. Vozes. 1983. p. 1‑33.
7. ESNOUL, Anne‑Marie. O hinduísmo. In: PUECH, Henri‑Charles, org. Las religiones en la India y en extremo oriente. 5. ed. Madri, 1985. v. 4, p. 13‑75.
8. WILHELM, Richard. I Ching, o livro das mutações. São Paulo. Ed. Pensamento. 1983. p. 106‑8.
9. 1Rs 10, 1‑2.
10. Is 60, 6
11. Jr 6, 20
12. Ex 30, 34.
13. Lv 2, 15.
14. BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega. Petrópolis. Vozes. 1987. v. 3. p. 44‑6.
15. CORNFORD, F. M. Principium sapientiae: as ori­gens do pensamento filosófico grego. 2. ed. Lisboa. Fundação Calouste Gulbenkian. 1981. p. 3‑49.

(*) O Prof. Dr. João Bosco Botelho é Chefe do Serviço de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvico-Facial, do Hospital Adriano Jorge, da Universidade do Estado do Amazonas (UEA); é Professor orientador dos Programas de Mestrado e Doutorado de Biotecnologia da Universidade Federal do Amazonas e de Doenças Tropicais e Infecciosas da UEA.