Francisco Carvalho
Recorro a um truísmo para dizer que o poeta Jorge Tufic já se tomou numa figura legendária da poesia brasileira do século passado e do milênio que se inicia. Críticos e resenhadores do país, independentemente de tendências e opções estéticas, não têm negado aplausos ao desempenho literário deste autêntico mestre da artesania poética, acreano de pais libaneses, nascido no final da terceira década do século recém-findo.
Numerosos livros de poemas e de ensaios enriquecem sua vasta bibliografia. Jorge Tufic é desses autores que exprimem, através do poema, sua paixão avassaladora pela beleza e fugacidade da vida, pelo legado existencial herdado de seus antepassados mais remotos. Profundamente ligado às raízes, sem renunciar à fidelidade e aos apelos do tempo presente, o poeta insinua-se nos meandros das realidades do cotidiano para se encontrar consigo mesmo, com as razões ou sem-razões do poema. Ou para confessar em versos como estes, repletos de evocações do seu rio tutelar: “Menino ainda, escolhi o meu acaso Segui uma nuvem que vinha das cabeceiras” (ZÉfiro com Soneata Barroca, Realce Editora, Fortaleza, 2004).
Mestre incontestável do soneto, essa teia mágica que ainda intriga os pretendentes de Penélope, Tufic passa incólume pelas “perpétuas grades” (Augusto dos Anjos) dessa autêntica jaula medieval, com certeza uma das mais polêmicas de todas as modalidades de poemas já concebidas pela fantasia humana. Os sonetos de Jorge Tufic são de uma leveza prodigiosa, e nisso reside um dos segredos de sua modernidade.
(Oportuno lembrar que o texto literário produzido sob o signo da norma culta é, necessariamente, terreno propício ao surgimento de numerosas figuras de sintaxe e/ou de pensamento, das quais é pródigo o idioma dos nossos ancestrais ibéricos. Essa opulenta nomenclatura de tropos faz parte do acervo arqueológico do próprio idioma, razão pela qual, na maioria das vezes, eles entram compulsoriamente na poesia ou na ficção sem que os autores tenham contribuído diretamente para isso. Seria utópico imaginar que a verdadeira poesia dependesse, aleatoriamente, de eventualidades ornamentais. Não seria absurdo imaginar que esses arquétipos podem ser encontrados até mesmo numa tediosa exposição de algum balancete sobre lucros bancários.)
Poeta de muitas andanças pelo Brasil e outras paragens do mundo, espírito inquieto num corpo de beduíno, Jorge Tufic assimilou imagens e recordações dos lugares por onde passou. De tal modo que em seus poemas arrulham pássaros e regatos, rios e lagos que escondem mistérios, lendas de sereias e visões encantadas, duendes, feiticeiros e outros seres fantásticos que habitam nos troncos diluviais da floresta amazônica. Além de colméias dos tempos da criação do mundo, construídas de fragmentos de diamantes lapidados. Sem falar nas flores exóticas cuja beleza e perfume enfeitiçam os homens, peixes, insetos e animais que se acasalam ou hibernam nas grutas, à espera que os estios acordem no fundo dos lagos.
No primeiro poema de Zéfiro, Tufic já celebra o rio tutelar: “Este rio profundo, mas / nem tanto como a noite e as palavras / que dormem nas conchas do lodo”. É a saga do menino que vai descobrindo paulatinamente o mundo poroso das águas. “A incansável descoberta dos mapas/ nomes que foram sendo trocados/ passaportes vencidos”. A referência a passaportes sugere que o menino já trazia, dentro de si, as encruzilhadas, rotas e caminhos que deveria percorrer ao longo da vida. Ao ouvir predição de pessoa estranha, segundo a qual haveria de ser famoso, deixou “que o menino ficasse ali/ para sempre / coberto de vaga-lumes”. O memorial do menino prossegue em seu lirismo minucioso: “Os morcegos de Sena Madureira / tinham asas de eucalipto. / Quando estas árvores foram derrubadas / eles passaram a dormir nos alpendres. / E a insônia tomou conta das janelas”. O poeta confessa que nasceu numa rua chamada Amazonas. “Ficava perto do rio / perto do mercado. / Era a rua mais perto do mundo”. A rua em que o menino dialogava com o futuro poeta nas esquinas do sonho.
Por esse tempo, Tufic contemplava “A noite pública / sobre telhados particulares”. ZÉfiro com Soneata Barroca termina com o poema XIX. Um soneto no qual o poeta lavra esta inscrição para os tempos vindouros: “sou formiga, sou fonte, sou texugo / larva na sequidão dos necrológios. / Quem foi ao bosque, livre-se dos ódios / que outros lugares roubam-me do estudo; ali estão nossos ossos e o veludo / das luas sobre tantos episódios”. Restaria uma alusão especial aos treze sonetos de que se compõe a Soneata Barroca. Trata-se de poemas da melhor qualidade, seja pelos aspectos formais ou pela clarividência com que o poeta celebra as metamorfoses do cotidiano, onde muitos de nós naufragamos naqueles “instantes sem razão e sem verso”, a que se refere Carlos Drummond de Andrade.
Sempre imaginei que os verdadeiros poetas são bons em tudo o que fazem. (Deixo aqui a ressalva de Horácio, em A Arte Poética, segundo a qual até mesmo o bom Homero tem o direito de cochilar algumas vezes.) Pouco importa que escrevam poemas rimados e metrificados ou poemas em versos livres, sem medida e sonoridades coincidentes. Na épica, na ode, na elegia, no epigrama ou no madrigal, o verdadeiro poeta sempre diz a que veio. É o que acontece com Jorge Tufic, que oportunamente publicou plaqueta à maneira dos repentistas nordestinos ou dos chamados folhetos de cordel. Com o mesmo “savoir-faire” com que escreve poemas eruditos, onde celebra o amor, a vida e a morte sob o viés metafísico, Tufic canta em tom de menor intensidade, diversos outros assuntos ligados à natureza, ao ser humano e aos bichos de modo geral. Um exemplo de sua verve nessa vertente caudalosa da poesia popular: “Ao som, portanto, maduro / dessa batalha encourada, / visto a roupa do vaqueiro, / seu gibão, sua toada / e curto o couro dos bichos / que morrem de madrugada”.
Tufic está por dentro dos saberes e feitiços dos pajés, pessoas dedicadas às reflexões e estudos dos fenômenos da natureza que se revestem de conotações sobrenaturais. Segundo o poeta, em Quando as Noites Voavam, “os pajés costumam ver uma escada que tem a ponta no setestrelo e a base na fonte sagrada que alimenta as reservas do líquido primário” (p. 43). Logo mais adiante, esta informação para iniciados em estudos amazônicos: “Pelas bordas da fonte, rãs se petrificam de olho nos mosquitos. E a linfa, de alegre, não pára de cantar”. Desconfio que o engenhoso Tufic teria sido eminência parda de algum pajé para tratar de assuntos relacionados com bruxarias e outras coisas desse tipo. A segurança com que trafega nos labirintos e mitologias da selva lhe confere o diploma de pós-graduação nessa área inacessível ao comum dos mortais. Vejam a intimidade com que fala o poeta dos poderes da “Cobra Grande, que ajuda o boto a entrar nas moças surdas aos conselhos dos pais”. Pelo discurso poético de Tufic, a gente fica sabendo que “os filhotes da Cobra Grande deixam a barriga da moça” que se deixara seduzir ... “A água vai subindo, engole a casa. Nas palhas que submergem, cobrinhas arrastam seu avô para o fundo das águas”. Surrealismo à flor da pele.
Poderia escrever páginas inteiras falando dos poemas amazônicos desse acreano de raízes libanesas. Ele sabe das coisas e faz uso das melhores estratégias formais para transmitir ao leitor seu legado de saberes, como se personagem principal das lendas que nos conta de forma absolutamente sedutora. Na introdução do livro Quando as Noites Voavam, Tufic esclarece que suas crônicas (ou poemas) tiveram origem no “foco temático” da obra de Antônio Brandão Amorim, intitulada Lendas em Nheengatu e em Português. Tufic nos brinda com autêntico trabalho de recriação desses mitos e lendas que desafiam a voragem e fugacidade dos séculos.
Em livro lançado recentemente por editora de Manaus, de autoria de Gaitano Antonaccio, fica-se conhecendo melhor a história e as origens do homem e do poeta Jorge Tufic Alaúzo, como também das lutas do povo acreano para conquistar sua independência política. Como a grande maioria do povo brasileiro, purgou seus pecados na condição de inspetor fiscal do Ministério do Trabalho, mas não permitiu que lhe seccionassem a veia poética nem que o esmagassem nas engrenagens da burocracia, cuja aridez nos permite sobreviver por algum tempo, mas sempre nos deixa marcas indeléveis no corpo e na alma. O opulento currículo que hoje ostenta, constituído de títulos honoríficos, prêmios literários, medalhas de mérito, diplomas e certificados – tudo isso dá testemunho vigoroso da carreira ascendente do funcionário público e do poeta, figura admirada e respeitada em todos os estamentos da sociedade e do mundo intelectual do país. Por tudo o que escreveu em prosa e verso, pela coerência e limpidez do seu depoimento de ser humano, de humanista e de poeta, dou-lhe nota dez. “Cum laude”.