Amigos do Fingidor

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Tabaco: o sagrado e o profano em torno da fumaça – 2/6

João Bosco Botelho*

Quase dois milênios depois, milhares de quilômetros de distância das culturas mediterrâneas, os primeiros colonizadores, nas Américas, registraram a aspiração da fumaça produzida pela queima do tabaco e de outros vegetais como instrumento de cura de doenças (Figuras 1,2,3,4).

Figura 1 – Relações com o poder de cura da fumaça na América Central.


Figura 2 – Relações com o poder de cura da fumaça na América Central.

Figura 3 – Relações com o poder de cura da fumaça nas Américas do Norte e Central.

Figura 4 – Relações com o poder de cura da fumaça nas Américas Central e do Sul.
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No Brasil, os europeus Thevet(16), Salvador(17) e D'Evreux(18), instruídos na filosofia greco‑latina, relataram os hábitos sociais e crenças dos índios brasileiros. Os três foram unânimes quanto à importância da fumaça do tabaco na organização do espaço sagrado. A perspicácia de Thevet, citando comparativamente as obras de Aristóteles, Ovídio e Plínio, identificou o sentido mítico indígena do Grande Caraíba como o profeta‑mor responsável pela invenção do fogo.

Entre os Tupinambás, antigos senhores do litoral brasi­leiro, proliferou o mito de origem e da conservação do fogo(19) guardado por Monan nas costas da preguiça.

Os relatos dos cronistas e viajantes, no Brasil, alguns acompanha­dos de gravuras (Figura 5), narraram o uso da fumaça do tabaco nos ritos terapêuticos e divinatórios. Os pajés se comunicavam com os espíritos, para curar e adivinhar, através da força embriagadora da fumaça do tabaco queimado.
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Figura 5 – Relações com o poder de cura da fumaça no Brasil assinalado pelos primeiros elementos colonizadores.
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Herdeiro de outra informação, o colonizador sem compreender o significado mítico-religioso da fumaça, não tardou em demonizar o tabaco(20).

Apesar das severas restrições ditadas pela política colonial, em pleno século 21, em Manaus, permanece vivo o uso da fumaça do tabaco nos ritos de cura (Figura 6).
Figura 6 – Curadora rezando e soprando a fumaça do tabaco sobre a cabeça de uma criança doente, em Manaus, 2007.
(Continua amanhã.)

Bibliografia

16. THEVET, Andre. Singularidades da França Antártica. Belo Horizonte. Itatiaia. 1978. p. 171.
17. SALVADOR, Frei Vicente do. História do Brasil 1500‑1627. 7. ed. Belo Horizonte. Itatiaia. 1982. p. 84.
18. D'EVREUX, Ivo. Viagem ao Norte do Brasil. Rio de Janei­ro. Ed. Livraria Leite Ribeiro. 1929. p. 313.
19. MÉTRAUX, Al­fred. A religião dos tupinambás. 2. ed. São Paulo. Nacio­nal. 1947. p. 65‑79.
20. BOTELHO, João Bosco. Tabagismo: do sagrado ao profa­no. História da Medicina: da abstração à materialidade. Manaus. Valer. 2004. p. 369-380.
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(*)Livros do autor:

1. Otorhinolaryngologie et chirurgie cervico-faciale – técnica de diagnóstico e tratamento das doenças tumorais e não tumorais na face e pescoço.

2. Otorrinolaringologia e cirurgia de cabeça e pescoço para estudantes – técnica de diagnóstico e tratamento das doenças da face e do pescoço, com enfoque especial às doenças da tireóide e aos bócios de grande volume.

3. Arqueologia do prazer – ensaio teórico das memórias sócio-genéticas, para explicar a busca do prazer e a fuga da dor, presente nos animais, especialmente, no homem e na mulher.

4. Medicina e religião: conflito de competência – ensaios teóricos para entender os embates históricos entre a medicina e a religião em torno da cura.

5. Vovó Micas: lição de vida cristã – lembranças saudosas da avó Micas, a bondosa benzedora portuguesa de Matosinhos.

6. Sedução – romance
desenvolvido em dois ambientes: a cidade fictícia de Acará, no interior do Amazonas, e em Paris. Em Acará, dois grupos digladiam-se: os membros do Sindicado Patronal, todos seduzidos pelo dinheiro, e os do Sindicato dos Agricultores, seduzidos pelo marxismo. A peste da hepatite delta traz os franceses. Entre a miséria e a morte anunciada, os dramas e as farsas são expostas.

7. Deus genético – ensaio teórico da presença de Deus no genoma.

8. Epidemias: a humanidade contra o medo da morte – a organização social e a medicina organizando a luta contra o medo da dor e da morte nas epidemias de lepra, peste, gripe espanhola, AIDS e gripe aviária.

9. Os limites da cura – o drama da medicina para explicar as diferenças entre a doença curável e a incurável.

10. História da medicina: da abstração à materialidade – ensaio teórico da busca da materialidade das doenças, atado no paradoxo fundamental da medicina: em qual dimensão da matéria o normal se transforma em doença (se é que existem realmente as doenças como as entendemos hoje ou se a atual compreensão é um equívoco parcial ou completo)?