Amigos do Fingidor

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Depois de tudo
Inácio Oliveira


Depois de tudo fica um pouco, imperecível em forma de memória. A memória carregada de coisas tocadas pelo inesquecível torna-se um deus poderoso. Fiquei a mercê de seus caprichos, até nunca saber ao certo se as coisas que eu lembro hoje aconteceram de verdade.

Depois de tudo a vida ficou surreal. Não lembro o dia em que vim parar aqui, só sei que foi depois de tudo... (faz tempo). Mas às vezes sinto como se tivesse nascido aqui e essas paredes fizessem parte da minha infância. Há uma janela em que é preciso ficar na ponta do pé para poder ver alguma coisa. É assim que eu vejo o mundo, por essa janelinha apertada. Quando faz muito sol, meus olhos ficam embaçados e eu vejo apenas sombras, alguns vultos de homens pequenos correndo pela manhã inteira. Acho que aquilo é uma escola e eu quase posso sentir o cheiro das escolas da minha vida; penso que todas as escolas do mundo têm o mesmo cheiro, aquele cheiro antigo da tia Eulália ensinando matemática. Do outro lado há um canto escuro como se estivesse constantemente anoitecendo, há um poente lento e longo e às vezes dói.

Vez em quando Dr. Rossi vem por aqui com sua lanterninha. Aperta minhas pálpebras e foca bem dentro das minhas pupilas, abre minha boca e enfia aquela luz doída dentro da minha garganta. Acho que ele pretende ver minha alma (desconfio que eu não tenha mais alma), em todo caso seria melhor se eles mandassem um padre, pastor, rabino ou coisa parecida. Aí o Dr. Rossi vai embora, parece frustrado como minha ausência de alma.

Outros vêm por aqui. Alguns que vêm, não sei se existem, outros sei que existem, mas nunca vêm (isso é muito louco). Existe o Nildo, o guardião. Ele me olha com um olhar distante. Distante, mas opressor, como se olhasse para mim e visse outra coisa, uma coisa que não gosta de ver.

Duas vezes por dia vem a Lucia. Lucia é a que eu mais gosto, ela me chama pelo nome (ser chamado pelo nome me dá uma emoção danada). Também me traz comida; com o tempo a comida de Lucia foi perdendo o sabor; agora sinto apenas um leve gosto de sal com legumes. E isso é bom, porque eu posso imaginar que estou comendo qualquer coisa. Lucia tem um olhar bondoso que parece piedade, mas não é. É só tristeza mesmo, aquela tristeza que vai humanizando as pessoas até elas se tornarem meigas.

Eu sempre fico julgando as pessoas pelo olhar. Nunca conheci ninguém que pudesse fingir um olhar. O olhar é a coisa mais sincera que existe. Toda vez que alguém tenta fingir um olhar deixa implícito que é um olhar falso e logo a gente descobre que a pessoa está sendo falsa. E falsidade é uma coisa que eu não admito; foi por isso que eu arranquei os olhos da Alzira. Depois me mandaram para cá...

Lembro dos olhos vazados da Alzira e da Mariana chorando atrás da porta. Se a gente olhasse bem dentro da cara sem olhos da Alzira podia ver o inferno dentro dela. Alzira me olhava como se fosse a melhor pessoa do mundo, ficava me subjugando, me condenando. Eu me sentia miúdo sob o peso do seu olhar inquisidor. Alzira tinha muitas faces, fazia a amiga, compassiva, quase sempre distraída, para não chamar atenção enquanto negociava nossas cabeças com os caçadores de cabeças. Usava roupas pretas, elegantes, decotes bem comportados e perfumes caros para disfarçar seu cheiro macabro. Parecia uma boa pessoa (grande parte da gente que não presta parece ser uma boa pessoa) e parecer é tão importante para elas.

A primeira vez que vi Alzira, ela estava usando óculos escuros e nem fazia sol. Se há uma coisa que eu detesto neste mundo são óculos escuros, sou capaz de odiar uma pessoa só de olhar para ela e ela estiver usando óculos escuros. A gente nunca sabe ao certo o que os olhos das pessoas estão dizendo. É como se estivessem conversando com a gente em um idioma desconhecido.

Na verdade eu tinha pena de Alzira, uma pena que foi se transformando, evoluindo para ódio. Foi melhor assim. Pena é um sentimento grotesco, vem sempre dessa estupidez da gente se achar superior a alguém. O ódio, não. É um sentimento elevado, uma espécie de amor ao contrário.

Quando eu estava como minhas unhas grandes dentro dos olhos da Alzira, pude sentir como se estivesse arrancando os olhos de todos os cretinos falsos deste mundo. Arrancar os olhos de uma pessoa não é difícil (quem já comeu caranguejo sabe).

Hoje a Mariana veio por aqui e foi como se fizesse domingo no meio da semana (no tempo em que havia domingos). Acho que eu amava Mariana, mas amar é uma coisa tão pretensiosa para estes tempos difíceis. Maria vem às vezes, meu coração fica pequeno, meus olhos úmidos, e eu quase paro de sentir frio.