Amigos do Fingidor

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Entrevista com o Menino

L. Ruas*


Quando me contaram pela primeira vez, não acreditei. Graças a Deus, não sou muito crédulo. É verdade que levo em conta certas verdades que, para muitos, é sinal de estagnação mental. Foi por causa dessas verdades que uns amigos meus, não faz muitos dias, me chamaram de ingênuo. Em outras palavras, eles me quiseram chamar de retrogrado ou coisa que o valha. Não faz mal. Eu continuo acreditando nessas verdades. Não são muitas. No máximo umas doze. Isso mesmo. São somente doze. Em quantas coisas você acredita, leitor? É engraçado. Há muitos como você, leitor, que ainda não sabem em quantas coisas acreditam. Não. Não me diga que não acredita em coisa alguma, porque senão você vai ficar incluído entre os que acreditam em mais de doze verdades. Você, talvez, não acredite nas doze verdades nas quais acredito, mas vai ver que acredita em outras. No final das contas, todos nós somos uns grandes crédulos.

Mas, voltemos ao assunto. O que me disseram foi o seguinte: que todos os anos o menino nasce. Você acredita nisso? Nem eu acreditei quando me contaram. Nem eu nem o diretor do jornal. Quando telefonei dizendo-lhe que ia dar um furo sensacional (quando telefonei já estava acreditando... bem, não era bem isso. Eu estava muito curioso) ele deu uma gargalhada do outro lado:

– Ora, vá às favas com o seu furo! Você vem me incomodar com uma tolice destas! Tenho mais o que fazer. Um menino que nasce todos os anos... Isso é bom para cinema.

Mas agora eu estava curioso demais para desistir. Queria ver. Queria saber. Não era possível que tanta gente estivesse tão enganada ou quisesse simplesmente blefar.

À noite, telefonei para uns fotógrafos meus amigos para ver se podiam ir fazer um serviço comigo. Desta vez fui mais prudente não revelando minha intenção e a minha história. Disseram-me que não podiam, era noite de Natal, você sabe, numa noite assim a gente deve ficar em casa com a mulher e os garotos... Alguns me convidaram para ir cear. Muito obrigado, não posso. Eu tenho que fazer este trabalho... Não, não é com ninguém importante, não. Eu é que estou vendo se consigo tirar rendimento novo de assunto muito velho. Me desculpe, não posso sair de casa numa noite de Natal, você compreende, né?...

Sair de casa numa noite de Natal para ir entrevistar um menino era mesmo coisa de gente que não tinha a cabeça no lugar. Quando ia andando pelas ruas escuras e úmidas e passava pelas casas cheias de luz, árvores de natal coloridas, crianças brincando, mesas cobertas de doces e comidas ou pelas igrejas cheias de gente que aguardavam a Missa do Galo, muitas vezes me deu vontade de voltar para casa. Mas não voltei. Eu estaria sendo um ingênuo mais uma vez, mas não fazia mal. As ruas estavam em péssimas condições. Muito escuras e, como chovera bastante, por várias vezes me atolei em buracos cheios de lama. E o lugar era horrível.

Bati palmas. Tudo muito quieto. Não havia choro de criança nem as costumeiras visitas. Um fugidio cheiro de alfazema se perdia no ar. Misturado com cheiro de samambaia. Deve ser aqui. Cheiro de alfazema é criança nova. Depois de alguns segundos um homem apareceu à porta. Com uma lamparina. Vi que era um homem simples e bom. Uns quarenta anos, no máximo.

– Pode entrar, por favor. Ele está lhe esperando.

Está lhe esperando ou o está esperando? Perguntei a mim mesmo. Mas não tive tempo de resolver a dúvida gramatical porque o homem já me havia conduzido para dentro.

A mãe era uma jovem de seus dezenove ou vinte anos. Alguns me disseram que ela era uma vigarista. Não foi essa a minha impressão. Estendeu-me a mão, cumprimentou-me com certa graça cheia de simplicidade e voltou para o seu lugar. Não vi nada de extraordinário nela. Era tão comum que, no mínimo, seu nome era Maria. Não, não era uma vigarista. Se havia isso de vigarismo naquela história toda, era da parte de alguém que andava explorando aqueles pobres miseráveis. Mas, antes que eu me decidisse a favor ou contra o vigarismo da história, o menino me falou:

– Sente-se, por favor.

Sentei-me numa pedra que estava mais perto dele. Queria ver o menino bem de perto. Não havia muita luz. A lamparina era, apenas, um ouro avermelhado dentro de um círculo azulado. Mal deixava divisar a fisionomia do menino.

– Fique à vontade. O Sr. é jornalista, não é? Eu gosto de vocês, os jornalistas. Já tive bons amigos entre os jornalistas. E ainda os tenho. Outros me são desafetos, mas o são gratuitamente. Não sei se você vai conseguir escrever alguma coisa com esta luz tão fraca. Meu pai, todos os anos, pensa festejar o Natal de um modo mais alegre. Mas ainda não pôde mandar ligar a luz. (E riu). Aliás, muitos, como meu pai, não podem fazer isso. Seria bom que todos tivessem ao menos luz em suas casas na noite de Natal. Mas eu ainda não vi luz elétrica desde que nasci pela primeira vez. Posso dizer que nunca vim à luz, mas, somente às trevas. (Riu de novo). Estou brincando novamente e você está perdendo seu tempo. Com certeza você não veio até aqui para brincadeiras, mas para tratar de assuntos sérios. Logo na noite de Natal. Vamos. Que é que você quer saber de mim?

Fiquei desnorteado quando ele me fez esta pergunta. Eu já estava desejando que ele continuasse a falar, de tal maneira que não me desse tempo para fazer qualquer pergunta. O que era mesmo que podia perguntar? Arrisquei:

– O mundo está melhor ou pior do que...

– Claro que está muito melhor. Será que você não vê isso? Basta que você pense no esforço de união que está havendo no mundo. Já sei. Você vai falar da bomba atômica, da de hidrogênio, da guerra, dos foguetes. Tudo isso é medo. Os homens têm muito medo. Eles querem se unir, mas têm medo. Não condene os homens por isso. O medo é uma coisa pavorosa. Quem diz isso muito bem é o Ariano Suassuna, no Auto da Compadecida. Eu também já tive muito medo. Todos os homens o sentem. É terrível! O que falta nos homens é um pouquinho mais de boa vontade. No dia em que eles tiverem mais boa vontade, terão a paz.

Aproveitei a deixa:

– Você é entreguista ou comunista?

O menino sorriu e eu senti que fizera uma pergunta muito tola. Na verdade, eu já estava sem saber o que perguntar. Olhei de soslaio para a mãe. Ela continuava sentada ao lado do menino, no chão. Remendava uma roupa de trabalho do marido.

– Ainda há muita miséria no mundo. (Disse isso e suspirou um tanto tristemente). Imagino que há quem diga que eu sou culpado disso. Mas como é que sou culpado se eu mesmo sou vítima? Estou sempre nascendo nestas condições. Você já deve ter reparado como é nossa casa... Se é que isso pode se chamar casa... Meu pai é uma vítima da injustiça social. O que ele ganha não dá para nada. Aliás, por aqui pela redondeza há muitos na mesma situação. Já reparou como nós estamos conversando só sobre política? Dizem que isso é política... Mas o culpado foi você que me perguntou sobre o mundo. Os homens pensam que basta trocar o regime político ou econômico para serem felizes...

Eu ia perguntando o que seria necessário fazer para que os homens sejam mais felizes. Mas o menino olhou para mim com tanta bondade e tão fixamente que eu pigarreei e baixei a vista para não encontrar de novo os seus olhos fortes e bons.

– Está vendo? Dizem que eu não falo. Mas até agora só quem falou fui eu. E me sinto mais tagarela do que nunca. Eu sempre falo. Nem sempre, porém, tenho quem me ouça. Quando encontro alguém que tenha paciência de me ouvir (eu quase disse um “não apoiado”, mas me lembrei que eu não estava nem em academia literária, nem em assembleia legislativa, nem em almoço de homenagem) não paro mais de falar. É que eu gosto muito de conversar com os homens. A gente trocando ideias sempre se distrai e os homens andam muito preocupados. Geralmente, todos os que me vêm visitar estão estafados como se estivessem carregando pesadíssimos fardos. Não pense que consigo sempre desfazer, aliviar este cansaço. Há muitos que saem daqui mais preocupados do que estavam antes. Mas sei que estes voltarão.

Olhei o relógio. Duas e meia da manhã. Não era possível! Eu já estava ali há mais de duas horas? Sentado naquela pedra dura? Quase não consegui me levantar. As pernas estavam dormentes e os rins doloridos. Não teria sido só a posição, mas, também, a umidade. A água quase minava da parede. Num canto havia um resto de fogueira. Brasa e cinza. Foi olhando para a fogueira que percebi dois vultos. Apertei bem os olhos discretamente e vi um burro e um boi. Fiz uma pergunta já de pé:

– Dizem que sempre há anjos quando você nasce?

– Anjos? Há, sim.

– E por que sempre que você nasce há, também, um burro e um boi?

Ele me olhou como da vez que eu ia perguntando o que era preciso fazer para que os homens fossem felizes. Pensei que não ia responder, mas respondeu:

– São poucos os que entendem os símbolos. Muito menos os que acreditam neles.

Vi que ele já estava com sono. Eu também. Despedi-me. Não me preocupei mais em descobrir, no pai e na mãe, sinais de vigarismo. Saí. O céu estava cheio de estrelas, mas a noite estava muito úmida. Fora, senti novamente o cheiro de alfazema e de samambaia. Um galo cantou numa árvore do quintal vizinho. Resolvi, de vez, voltar para casa. Quando dei o primeiro passo, me fiz a seguinte pergunta:

– Será que adianta eu escrever isso? Quem terá boa vontade para acreditar nestas coisas?...


(*) Publicado originalmente em O Jornal, Manaus, 27 de novembro de 1966. Garimpagem: Roberto Mendonça.
L. Ruas ou Luiz Ruas (1931-2000) foi poeta, ensaísta, cronista, professor universitário, ativista político e sacerdote católico.