Amigos do Fingidor

domingo, 13 de dezembro de 2009

Sobre a matemática de Borboleta
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(conto infantil)

Allison Leão

I


Difícil saber exatamente o que uma mãe pretende ao matricular, dois anos antes do devido, seu filho na escola – certamente tem suas razões e talvez ótimas intenções. Do que vou contar, só é possível concluir que tal zeloso gesto tenha causado sérios problemas sociais ao menino de que agora saberemos. Senão vejamos:

Cá o temos na fila escolar, em seu primeiro dia de aula. Está com recém completados cinco anos de idade. A situação, apenas por estranha que seja, pode apequenar de receio estas já pequenas criaturas. Sendo este menino mais novo e menor que os demais, calculem... No fim das contas, estranhos todos eles são uns aos outros, e por isso, de pronto, dois caminhos se apresentam nesse importante dia: ou eles se entregam ao medo e choram, ou procuram se identificar logo com este ou aquele colega. Felizmente, como há urgência na situação, identificar-se com alguém não requer maiores argumentos. Pode acontecer por mochilas que se pareçam; por já se terem cruzado pelas ruas do bairro; quem sabe, por serem da mesma igreja; e, num caso de sorte, talvez haja entre os colegas do primeiro dia um primo de que se goste muito (ou de que não se goste nem um pouco – nessas circunstâncias, tanto faz).

Douglas chorou.

Naquele dia, além dele, apenas duas meninas choraram. Desde então, Douglas aprendeu que: meninas só andam com meninas; e meninos não andam com menininhos chorões.

Nos meses que se seguiram, não houve adaptação. Boa e perversa memória têm as crianças. E ainda que não a tivessem, o tamanho desprivilegiado de Douglas frente aos outros os fazia recordar: nós, meninos, ele, menininho. E chorão. Várias vezes pediu à mãe que o tirasse da escola. Mas ela dizia-lhe para deixar de ser frouxo. Ante a irredutibilidade da mãe, ele começava a chorar. Ela então o abraçava e o chamava de meu menininho. E entre a necessidade de deixar de ser frouxo e a condição de menininho – e pária –, Douglas atravessou o primário, chegou ao fim da 4a série.

Felizmente para Douglas, a escola não oferecia estudos da 5ª série em diante, e ele teve de ser transferido. Em geral, as crianças eram distribuídas entre as várias escolas da região. Para os propósitos de Douglas, isso era ótimo, pois, com um pouco de sorte, muitos dos conhecidos que sabiam do seu passado iriam para escolas diferentes da sua. Além disso, esses colégios eram maiores que a antiga escolinha e possuíam várias turmas de 5a série, de maneira que as possibilidades de encontrar com as marcas do primário eram bem remotas.

A 5a série chegou como um réveillon de promessas. A escola grande, os corredores repletos de garotos e garotas desconhecidos e desconhecedores. O infeliz detalhe de estar acompanhado da mãe neste novo primeiro dia não chegou a reprimir o comichão que assaltou Douglas, se bem que lhe tenha engasgado qualquer manifestação de alegria. No entanto, assim que soube em que turma o filho ficaria, ela foi embora. E já foi tarde, poderia ter pensado o menino, se a hora fosse para pensamentos.

Não era. Ele queria voar, andar pelos enormes corredores, ver os novos rostos, sentir o prazer de ser desconhecido. Ninguém que soubesse de sua idade, podia começar do zero. Ou melhor, dos 11: crescer dois anos em um dia! Podia inventar outro nome para si. E não seria difícil, afinal, nos primeiros dias de aula os professores não dispunham da lista de chamada. Cada um deles passava a classe em revista simplesmente perguntando a cada aluno seu nome. Tecnicamente, Douglas não iria mentir, já que este era seu segundo nome. Mas era necessário testá-lo, afinal nunca havia sido utilizado, a não ser para atrapalhá-lo enquanto era alfabetizado. O incomum tanto pode ser feio como belo, mas continua sendo incomum.

Em meio à azáfama inicial, antes da primeira aula, Douglas circulou pelo colégio. Ao passar pela cantina, notou um colega sozinho, recalcado num canto. Gordinho e como se acuado estivesse, o garoto devorava com ferocidade um pastel de queijo, talvez se apoiasse no pastel e se resguardasse atrás da garrafa de refrigerante – quando enfiava esta na boca, olhava ao redor através do líquido gelado e negro. A Douglas pareceu inseguro, o que lhe deu confiança: se meu novo nome gerar risadas nesse coitado, fico com meu primeiro e marcado nome, cogitou. Chegou perto e disse oi. Mas, de boca cheia, o garoto demorou a responder. Douglas repetiu a saudação e agora lhe perguntou o nome. Após um gole em que aproveitou para estudar a única figura que até ali lhe havia dirigido palavra, Felipe de Oliveira Borboleta falou.

E que alívio para Douglas: o outro tinha um nome pior que o seu. Um reparo e um quase isso: não era o nome, era o sobrenome; e não era pior, era mais esquisito, isto é, pior. Douglas achou curioso o menino dizer o nome completo. Felipe de Oliveira Borboleta disse que assim seu pai recomendara: que nunca tivesse vergonha do sobrenome, pois as pessoas é que ignoravam a verdadeira força que pode haver numa borboleta. Douglas assim se apresentou. O outro não riu. Voltou a se concentrar no pastel. Douglas ficou sem assunto, até pensou em explicar a origem do nome, que a mãe encontrara numa revista antiga a foto de um belo avião. Mas achou melhor se retirar, que o teste já estava feito, o nome estava aprovado.

A primeira aula foi de matemática. A professora pediu que cada um se apresentasse, que dissesse onde havia estudado, quantos anos tinha etc. Mentalmente Douglas preparava uma breve apresentação: meu nome é Douglas, tenho 11 anos. Douglas, viu? 11 anos, viu? Mas antes que chegasse sua vez ouviu o primeiro aluno que se apresentou dizer que ali na sala só conhecia o Antônio, aquele ali, e apontando para Douglas acabava com seu sonho de ser outra pessoa. Imerso na empolgação pela vida nova que dançava à sua frente, Douglas não percebera a presença de Aristóteles Cabeção, o maior fofoqueiro da antiga escolinha. Cabeção não sabia falar de si, e Douglas era, naquele momento, seu único conhecido. Ao menos Douglas não precisava mais se apresentar: Cabeção quase não deixou nada por ser dito, enfatizando o choro do colega no primeiro dia de aula, na 1a série. Mas felizmente esqueceu-se do importantíssimo detalhe da idade. Ainda assim, os poucos minutos na vida de Antônio como Douglas acabavam ali.

Naquela mesma aula, a professora avisou que toda semana haveria uma sessão de tabuada. E o desespero congelou-se na garganta de Antônio. Ele não era exatamente um mentecapto, mas a casa mais simples, segundo comumente se acredita, era com a qual tinha seus maiores problemas. Isto é, não era a casa toda, era uma só linha: 2+2. É inexplicável o que acontecia a Antônio, mas desde a 1a série ele sempre respondia automaticamente cinco à pergunta 2+2? Primeiramente se distraía com a beleza perfeita e reta dos números. Depois não resistia à tentação de espatifar essa retidão, e: cinco.

Ainda nesse dia, houve grandes gargalhadas quando Felipe de Oliveira Borboleta se apresentou. Por empatia, Antônio sentiu piedade do outro. Seu aspecto era mesmo deprimente: gordo e rosado, usava óculos, não falava direito, tinha assim como que a boca mole quando pronunciava Éfes, Pês, Vês e Bês, sons que abundavam em seu ridículo nome, que ele fazia questão de dizer por inteiro.

A solidão e o banimento de Antônio não demorariam a se encontrar com o banimento e a solidão de Felipe de Oliveira Borboleta.

Sem demora, descobriram que seus caminhos entre escola e casa coincidiam em grande parte. Começaram a fazê-lo juntos. Felipe de Oliveira Borboleta a princípio desconfiado. Mas, afinal – assim mesmo, de uma hora pra outra –, tornaram-se amigos, talvez porque ninguém mais na escola, durante aquela primeira semana e semanas vindouras, se interessaria em chegar perto de ambos.


Na 5a série, ninguém quer ser notado. Mas para não ser notado é preciso antes de qualquer coisa se fazer notar. O que não se quer, enfim, é ser apontado. Por isso cada qual como que se aponta a si mesmo. O Cabeção se apontava como fofoqueiro: uma cabeça enorme e cinqüenta bocas. Alguns garotos se apontavam pelos adereços que possuíam. O Jean foi o primeiro a ter uma mochila Company, enorme, sobrando em suas costas, como uma corcova: um sucesso! Kevin, o primeiro a aparecer de tênis Reebok. Por ter comprado o calçado dois números acima do seu (para usar por mais tempo), caminhava com dificuldade sobre os pranchões. Havia o Arley, que já trazia fama de outra escola porque tinha o nome muito parecido com o do cometa Halley, e de feio que era o Arley bem podia ter vindo do espaço. Mas nem tudo era grotesco. Havia também a beleza. Beleza porém copiada, pastiche de beleza: diziam que o William era a cara do Morten Harket, o vocalista do grupo A-ha. Logo William perderia espaço para o Jackson, que lembrava um pouco o Jordan Knight, do New Kids On The Block, grupo mais atual na preferência das meninas. Ah, sim, havia as meninas. Serena, linda que era, não falava com ninguém. Quem quisesse ouvir sua voz de pérola teria de ir à Igreja Metodista, onde aos domingos ela solava hinos protestantes. A Cindy, por sua vez, garantiu fama para um ano inteiro após ter chegado à escola de carona num Escort XR3 conversível. De pé no banco de couro, com os cabelos esvoaçando, ria e jogava a cabeça para trás. Parecia que voava. No meio dessa arena de esquisitices havia até espaço para um japonês que levantava a camisa e desafiava todo mundo a lhe dar um soco na barriga, que mais parecia uma calçada de pedras – seu nome era Shito Kano. O pessoal batia e Shito permanecia impassível, como um jacaré ao sol. Por algum pudor, Antônio não batia. Também havia os que não contavam, aqueles de cujo nome, nos longes da memória, ninguém lembrará – Antônio fazia parte desse grupo. E havia o Felipe de Oliveira Borboleta, o melhor na tabuada.

Na área da tabuada, a classe estava mais ou menos homogênea. O problema era que a professora fazia as perguntas muito rapidamente. Numa fração de. Pronto, já foi. De fila em fila, 6x7? 6x7? 6x7? 6x7? 6x7? 6x7? Antônio, abobalhado, ficava a olhar o modo ligeiro como ela perguntava aquilo, e não chegava a tomar consciência sequer da pergunta em si. Mas quando ela chegava ao Felipe de Oliveira Borboleta: 42.

A professora desenvolvera um método infalível de envergonhar os alunos, que consistia em aquele que acertasse a questão passar a palmatória em todos os que, sem êxito, o houvessem antecedido. Como requinte pedagógico, Felipe de Oliveira Borboleta foi posto no último lugar da última fila, e não foram poucas as vezes que ele deu bolo na classe inteira, sob o olhar deliciado da mestra. Mas compreendamos a professora: deve haver certa plasticidade nas mãos estendidas em seqüência e em seqüência retiradas, conforme Felipe de Oliveira Borboleta as coletava com a palmatória. Um balé.

Logo na primeira vez que Felipe de Oliveira Borboleta teve de dar bolo em seu amigo, Antônio notou que o outro ia fraquejar: bolo amargo para se dar ao único amigo! Mas o condenado olhou com firmeza para o carrasco, encorajando-o – os que fraquejavam tinham por castigo tomar bolo da turma inteira. Antônio estendeu a mão com todo o heroísmo que pode ter alguém de 9 anos, isto é, 11. Felipe de Oliveira Borboleta fez cara de mau, mas disfarçada e displicentemente aplicou o bolo mais forreca possível. Percebendo o cinismo de seu amigo, Antônio fingiu dor. E assim o foi todas as demais vezes em que aquele tinha de aplicar a este o castigo. Isso foi um grande passo na amizade dos dois. Antônio não demoraria muito a revelar seu maior segredo – a verdadeira idade. E perguntou ao amigo se ele também tinha algum. A resposta foi negativa. Era um menino sem segredos.
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(Conclui no próximo domingo, 20)