Amigos do Fingidor

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Poemas no mar mineiro

Cristina Duarte-Simões*


Decididamente, a poetisa brasileira Tânia Diniz tem jeito para semear... Há mais de vinte anos, através do movimento Mulheres Emergentes, ela espalha pela cidade de Belo Horizonte – sob a forma de cartaz – um número impressionante de poemas escritos por mulheres, não somente nos lugares mais propícios (escolas, bibliotecas), como também nos mais inesperados (estações, centros de eventos e convenções). Um trabalho que exigiu muita tenacidade, pois apesar de no início não ter contado com nenhum apoio financeiro, a autora mineira soube persistir no seu projeto e aperfeiçoá-lo com o passar dos anos. Para comemorar o décimo oitavo aniversário desses cartazes poéticos, foi lançada em 2007 a coletânea Antologia ME 18, apresentando uma compilação de poemas escritos por quarenta e três mulheres.

Recentemente, procurando destacar o aspecto masculino desse trabalho original, Tânia Diniz decidiu prestar homenagem a todos os homens que, às vezes nos bastidores, apoiaram o projeto desde 1989. E eis que poetas, escritores, desenhistas, radialistas, jornalistas, colaboradores, amigos e leitores aceitaram o convite. Todos esses textos poéticos foram então publicados na Antologia Meninos, que acaba de ser lançada no Brasil.

O pequeno livro de 63 páginas surpreende pela grandeza do propósito e do conteúdo. "A poesia emerge desses meninos para nos tornar ainda mais humanos", anuncia pertinentemente o escritor Caio Junqueira Maciel, no texto inaugural. Com efeito, um prazer imenso conduz o leitor nesse percurso tecido pelos 25 poetas da coletânea. Há uma grande diversidade: jovens e menos jovens; poetas premiados e desconhecidos do público em geral; alguns preferem poemas curtos, outros mais longos; uns adotam formas poéticas contemporâneas, outros permanecem fiéis às formas clássicas. São poemas-poemas, poemas em prosa e até mesmo visuais. Ainspiração dos autores é também bastante variada. Num momento, um poeta presta homenagem ao animal de companhia que acabou de perder (“Lá vai o poeta fazer a cova…”, Antônio Dayrell); em outro, são versos curtos que descrevem o instante mágico de uma pausa musical (“Dança nordestina”, Osvaldo André); um pouco depois, certos cômodos de uma casa são revisitados com nostalgia (“A casa perscrutada: escrivaninha / biblioteca / quarto das meninas”, Zemaria Pinto). Às vezes, prefere-se a forma clássica para louvar a mulher amada (“Soneto para iluminar você”, J.B. Donadon-Leal); outras vezes, a concisão de seis versinhos é suficiente para falar do desejo (“Aportar”, Cláudio Márcio Barbosa). Um poeta presta homenagem ao piano de uma mãe: toda tecla / plena de história (“Poema pro piano da mãe de Rogério Salgado”, Kiko Ferreira); enquanto outros confessam a admiração que têm por Michel Foucault (“Foucaltidianamente”, Lucas Guimaraens) ou por Julia Kristeva (“Efeito Kristeva”). Se Sérgio Bernardo prefere encenar a fuga de um homem de um campo de concentração para homossexuais (“Atrasa o trem na estação de Bergen”), J.S. Ferreira lembra, em versos incisivos, o drama da Faixa de Gaza, em que o eterno estopim do ódio se acende (“Na faixa de Gaza”).
Como no livro anterior (Antologia ME 18), pinceladas vigorosas fazem reviver o poeta Carlos Drummond de Andrade, mineiro, como aliás os dois livros citados. É o caso do poema “Passagem” de Lucas Guimaraens, que não deixa de relembrar dois grandes monumentos poéticos do grande autor: “José” e “A flor e a náusea”: No rumo da casa José colheu a rosa no asfalto. A inspiração do poeta de Itabira pode também ser encontrada na leitura do poema “Esperança”, do mesmo Lucas Guimaraens, que parece fazer referência ao “Poema de sete faces” (Mundo mundo vasto mundo, / se eu me chamasse Raimundo…), como ao “Soneto da perdida esperança”. Por seu lado, Luiz Zanotti também homenageia Drummond no belíssimo poema “Luiza”, iluminado com muita sensibilidade pelo texto em prosa que o acompanha. A menina Luiza acabou de nascer, é a filha do autor; enquanto que no texto de Drummond trata-se de uma moça desaparecida e de uma mãe completamente desesperada (“Desaparecimento de Luísa Porto”). Entretanto, pensamos que são nos poemas de Di Moreira (“Mineiro uai”) que se encontra a melhor transmissão do espírito do inevitável poeta, por exemplo nos versos: carrego com muito amor / o meu jeito do interior. De uma forma mais geral, pode-se perguntar se a referência ao grande Drummond — forçosamente intertextual — não seria passagem obrigatória para qualquer poesia originária de Minas Gerais; como se os poetas, a um momento do percurso, se sentissem na obrigação de pagar um tributo à essa obra monumental…

O Modernismo paulistano de 1922 também recebe uma homenagem através da pluma de um Lucas Guimaraens, bisneto do conhecido poeta do Simbolismo brasileiro, Alphonsus de Guimaraens. No poema “São Paulo”, o autor interpela os grandes nomes da Semana de Arte Moderna: Mário, Oswald, / de onde veio esta força em piadas / se trânsito não permite atropelar realidade? Por outro lado, se o livro anterior, organizado pela mesma Tânia Diniz, tinha nos acostumado à delicadeza dos textos das mulheres-poetas, esta nova obra surpreende pela exatidão dos sentimentos masculinos : Eu não tenho consciência da minha / fragilidade e do futuro / e me perco nas palavras (“Depoimento”, Sandro Starting); ou então: São os vales do meu sertão que me fazem assim… / jacumã das embarcações aladas… / colibri do mato, horizonte aberto… (“Jacumã”, Ronaldo Zenha); e o que dizer da tão bem sucedida aliteração : errar / a rota rota e surrada / entre / arrotos / matinais do poema, “Cohen et Joplin no Celsea Hotel”, de Kiko Ferreira?

Mesmo que a grande maioria dos poetas da Antologia Meninos seja originária do Estado de Minas Gerais, outras regiões do Brasil também estão representadas por autores que, de uma forma geral, adotaram a terra mineira. O carioca Paulinho Andrade compõe, numa linguagem fresca e coloquial, um dos poemas mais emocionantes da coletânea (“Honra e glória”). O amazonense Simão Pessoa interessa-se pelo próprio mecanismo da construção poética, não sem uma boa dose de humor (“Para fazer um poema concreto”). O artista plástico pernambucano Severino Iabá faz brotar poesia dos objetos de cerâmica fotografados (sem título, p. 50). Único poeta de origem estrangeira, o português Fernando Aguiar não deixa de fazer referência ao mar, inserindo-se numa forte tradição lusitana: e se de noite te acendo e na penumbra te beijo / é no teu mar de desejo que me quero afogar (“E se o riso”).

A dificuldade desta coletânea, hoje em dia, vem do simples fato de ser poesia, gênero um pouco menosprezado pelo público em geral. No entanto, para aquele ou aquela que tiver a delicadeza e a curiosidade de se aproximar e de ouvi-los, os versos desses meninos deixará, sem dúvida alguma, uma marca indelével. E a melhor imagem para definir esse aspecto frágil e fugidio, talvez seja a que foi proposta por Affonso Romano de Sant'Anna, na apresentação da obra: os diversos poemas vogam ao acaso no mar impalpável de Minas Gerais, um dos raros estados brasileiros a não dispor de acesso ao oceano.


(*) Professora na Université de Toulouse-le Mirail, França.