Amigos do Fingidor

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Medicina como Paideia IV
João Bosco Botelho


Platão (Górgias 464b, 465a, 501) utilizou parte da estrutura teórica da medicina-oficial grega como instrumento para compor algumas linhas mestras da sua concepção ético-filosófica. Nesse genial processo, estabeleceu valor significante à verdadeira tékhne, como forma de conhecimento na natureza do objeto destinado a servir ao homem.

Os conceitos platônicos confirmaram o médico como a pessoa que, baseada no que sabe sobre a natureza do homem sadio, conhece também o contrário, o homem doente, e competente para encontrar os meios para restituí-lo à saúde.

Com base neste modelo, Platão traçou a imagem do filósofo tendo a mesma função no trato da alma. Existiu, neste ponto do pensamento platônico, uma semelhança viva entre o médico e o filósofo, ao se completarem na busca da harmonia plena do homem com a natureza.

Os médicos gregos interpretaram um dos mais complexos problemas do diagnóstico: as múltiplas formas como uma mesma doença pode se manifestar. Para superar o estorvo, os teóricos das escolas de Knido e Cós viabilizaram classificações descrevendo essas manifestações, mas reconhecendo-as como uma doença (Thivel, Antoine. Cnide et Cós? Paris. Les belles Lettres. 1981). O genial dessa nova interpretação, nunca antes usada, é o fato de ter evitado o erro cometido nas medicinas-oficiais anteriores, praticadas nas primeiras cidades, onde as muitas manifestações clínicas da mesma moléstia eram consideradas doenças diferentes. Esse método foi identificado por Platão como dissecação ou divisão dos conceitos universais nas suas diferentes classes (Cornford, F. M. Principium Sapientiae: as origens do pensamento filosófico grego. 2. ed. Lisboa. Fundação Calouste Gulbenkian, 1981).

A Medicina como Paideia também contribuiu para que Platão reconhecesse as três virtudes do corpo - saúde, beleza e força - que harmonizariam com as quatro virtudes da alma - piedade, valentia, moderação e justiça.

As atitudes educadoras da Medicina como Paideia ultrapassaram os limites da terapêutica e incluíram a massagem, a prática dos esportes, a música, a dança, o teatro e os banhos coletivos no cotidiano da busca da saúde. No texto Das Epidemias (Darember. Oeuvres Choisies d’Hippocrate. Paris. Labe Éditeur. 1855), da Escola de Cós, esta ideia está clara:
A arte do médico consiste em eliminar o que causa dor e em sarar o homem, afastando o que o faz sofrer. A natureza pode por si própria conseguir isto. Se sofre for estar sentado, não é preciso mais que levantar-se; se sofre por se mover, basta descansar. E tal como neste caso, muitas coisas da arte do médico a natureza as possui em si própria.

Também é possível sentir, ao longo do século 3 a.C., o vigor da ação médica ligada à noção global da natureza jônica. O livro Das Epidemias confirma os conceitos de harmonia e medida (Daremberg. Oeuvres Choisies d’Hippocrate. Paris. Labe Éditeur. 1855): “ ... o esforço físico é o alimento para os membros e para os músculos, o sono é para as entranhas. Pensar é para o homem o passeio da alma”.

Nesse sentido, o médico era chamado para recompor a saúde, por meio de técnicas desconhecidas dos não-médicos. Para esse fim, utilizava os saberes como instrumento de leitura da natureza, como a justa medida da saúde. Hipócrates e os médicos da Escola de Cós, na obra Da Medicina Antiga, seguiram esse pressuposto ao afirmarem que o médico não pode saber de Medicina nem tratar os seus doentes sem conhecer a natureza do homem (Daremberg. Oeuvres Choisies d’Hippocrate. Paris. Labe Éditeur. 1855: “... os argumentos deles apontam para a Filosofia tal como a de Empédocles e de outros que escreveram sobre a natureza e descreveram o que o homem é desde a origem, como primeiro surgiu e de que elementos é constituído”.

A concepção teórica de saúde dos gregos também envolveu a harmonia. Sendo de natureza harmônica em si mesma, isto é, preenchendo na medida e simetria exatas as vicissitudes individuais, a saúde deveria ser procurada neste contexto da compreensão do normal. Sob essa mesma perspectiva, Platão (Fédon, 93e; Leis 773a; Górgias 504c) entendeu a saúde como a ordem do corpo e Aristóteles (Aristote. Ética a Nicômaco. X 1180b) associou a multiplicidade do comportamento moral às múltiplas dietas prescritas pelos médicos para as febres, mas não para todas as febres.

A tendência classificatória do pensamento grego, especialmente o aristocrático, estimulou as tentativas de ordenar as doenças em grupos que apresentassem alguma semelhança no diagnóstico, no tratamento e no prognóstico.

Com a literatura médica contendo as recomendações específicas das normas que deveriam ser obedecidas para evitar a doença, a medicina-oficial grega inicia outra importante contribuição para consolidar-se como Paideia - a saúde não dependeria só dos médicos. A dieta, a higiene, o lazer, a cultura, o esporte são partes do corpo são.

Os hospitais construídos nesse período eram grandes e possuíam divisões destinadas aos médicos e enfermos. O hospital da Escola Médica, na ilha de Cós, possuía salas de exames, alojamentos individuais para os doentes, salas de banhos coletivos, praça de esportes e anfiteatro para dez mil pessoas. É um dos muitos exemplos de como a arquitetura grega amparava o discurso teórico da harmonia com a natureza na busca da saúde.

O novo espaço da Medicina como Paideia junto aos conceitos jônicos com objetivos educadores, contribuíram para o surgimento das mais importantes obras médicas destinadas ao público não médico. Essas obras, Da Dieta, De um Regime de Vida Saudável e Da Natureza do Homem contêm fantásticas sugestões de como deve ser a vida das pessoas para evitar as doenças. Entre muitos aspectos, descrevem detalhes da caminhada após cada refeição dependendo da idade e das condições físicas de cada pessoa nas diferentes estações do ano.

A palavra higiene se impõe no sentido regulador não só da alimentação, mas também como caráter educativo na rotina do trabalho. A ginástica passou a fazer parte da manutenção da saúde. Por esta razão, os ginastas permaneceram independentes frente ao crescente poder médico nas relações sociais e também conquistaram papel importante no aconselhamento do corpo sadio.

O texto De um Regime de Vida Saudável se propõe servir de guia ao público. O autor desconhecido estabeleceu os parâmetros da cultura médica mínima que todos deveriam ter para permanecerem saudáveis. O objetivo central seria estabelecer, pela lei, o caminho que as pessoas deveriam seguir para evitar a doença.

O propósito parece ser o mesmo do autor do livro Da Dieta que aborda, em quatro capítulos, a teoria dos Quatro Humores. Se as patologias eram causados pelo desequilíbrio dos humores - o sanguíneo, o linfático, o bilioso amarelo e o bilioso negro - e estavam relacionadas com o cotidiano das pessoas, nada mais lógico do que estabelecer normas alimentares com o intuito de evitar os males da alimentação.

A estrutura teórica da Medicina como Paideia, na Grécia, no século III a.C., estava tão bem elaborada que perpassou o mundo romano. No século II, o médico Galeno (138-201), o mais conhecido representante da medicina-oficial romano-cristã, acoplou aos humores da Escola de Cós as novas categorias denominadas temperamentos. Os escritos galênicos, valorizados durante mais de quinze séculos, no Ocidente cristão, valorizava a sangria sobre todas as alternativas de tratamentos. Para cada humor haveria um temperamento que ditaria as condições de saúde, de doença, e da capacidade intelectual de cada indivíduo:

Humor / Temperamento

Sanguíneo / Sanguíneo
Fleuma / Linfático
Bilioso preto / Melancólico
Bilioso amarelo / Colérico

A imensa flexibilidade da Medicina como Paideia acabou ferida, na Idade Média, pela intolerância restritiva exaltando a medicina-divina, onde Jesus Cristo e os Santos ao substituírem os deuses e deusas greco-romanos, tornaram-se a única terapêutica requerida pelos incontáveis doentes sem esperanças, nos incontáveis santuários, especialmente em Jerusalém e Compostela.

A influência hipocrático-galênica trazida pelo elemento colonizador esteve claramente presente no Brasil, quando a princesa Paula Mariana, filha do primeiro imperador do Brasil, sob os cuidados dos mais importantes médicos da corte, faleceu após ser submetida a muitas sangrias e clisteres para expurgar os “maus humores”. No século XIX, o viajante Von Martius descreveu o temperamento dos índios como “fleumático, por terem pouco sangue nas veias”.