João Bosco Botelho
Só muito recente se tornou possível compreender melhor os ritmos que movem a natureza circundante: a noite e o dia, as flores da primavera após o degelo invernal, as fases da lua e o movimento das estrelas no céu.
De maneira precoce, o saber historicamente acumulado dos nossos ancestrais distantes assimilou o insubstituível significado do Sol à sobrevivência de todos. Após o inverno, a chegada do calor solar derretendo a neve e aquecendo os corpos representou a renovação da vida.
Existe na cidade de Newgrange, na Irlanda, um túmulo que serve de orientação climática aos agricultores da região. Na década de sessenta, os astrofísicos da Universidade de Dublin, comprovaram que a tumba, construída havia mais de cinco mil anos, é o mais antigo ¬ali¬nhamento astronômico conhecido. Essa sepultura pré-histórica foi construída por um povo agrário desconhecido. A característica fundamental do bloco lítico está na abertura de vinte centímetros existente no teto, por onde, no solstício do inverno, a luz do sol penetra e chega exatamente onde deveria estar repousando o morto celebrado.
Mesmo com a tecnologia disponível, que inclui os satélites e as gigantescas estações meteorológicas, é impossível prever com segurança os terremotos, os maremotos e as tempestades que causam tanta desolação e mortes no planeta. Se hoje, esse fato desperta atenção e medo, é possível pressupor significado semelhante nos grupos sociais que viveram há milhares de anos, desde os primeiros núcleos urbanos, quando a imprevisibilidade do clima determinava destruição das construções e colheitas, seguida de morte de pessoas e animais, obrigando à penosa reconstrução ou à migração forçada.
É possível que essa história de longa duração — medo da morte anunciada nos flagelos climáticos e júbilo na chegada do calor solar, na primavera, associado à saúde —, esteja presente na memória-sócio-genética coletiva e expressa no cotidiano por meio de muitas imagens metamórficas. Uma das mais significativas é a mãe-terra.
No processo ontológico de mudanças sociais e culturais, contíguo à luta pela sobrevivência, o instrumento das primeiras relações entre o Homem com outros animais — o sangue — foi substituído pela nova intimidade com a terra cultivada. O sangue, simbolizando a essência da vida, cedeu o lugar ao alimento vindo da terra cultivada.
Ainda hoje, em algumas culturas, na África central, ainda é possível encontrar arados com a forma de falo. Os significantes metafóricos da terra penetrada pelo arado e da vagina pelo pênis são semelhantes: ambos germinam vida nova para manter a sobrevivência do grupo. As colheitas vindas da mãe-terra continuam motivando celebrações semelhantes às dedicadas aos nascimentos de filhos e filhas da mãe-mulher.
As estruturas teóricas das religiões monoteístas e politeístas mantiveram as comemorações ao solstício do inverno. O vedismo (Bahagavad Gita 15,6) contém ensinamentos equivalentes aos da tradição judaico cristã (Is 40,10 11 e Jo 21,15 17). As celebrações religiosas, como a missa cristã, mantêm lugar de destaque à refeição, onde o pão e o vinho, filhos da mãe terra, estão presentes.
É particularmente expressiva a festa do nascimento do Sol Invicto (Dies Solis Invicti Natalis), próximo ao dia 25 de dezembro, comemorada na Roma antiga, junto com a saturnália. No dia em que o sol parecia se dirigir ao Norte, os trabalhos eram interrompidos, as casas recebiam enfeites com árvores e flores, os parentes trocavam presentes junto ao culto do deus Mitra (Natalis Solis).
O cordeiro e o Sol são descritos nos livros sagrados com a clara interdependência das duas fases da humanização: o primeiro, oriundo da primitiva relação do homem com os outros animais, representada pelo sangue, e o segundo, herança do sedentarismo, como condição insubstituível da sobrevivência.
Os incas do altiplano boliviano, sobreviventes de um dos mais brutais genocídios que o mundo conheceu, depois de quase quinhentos anos de humilhações, continuam rendendo graças à bondade da Pachamama, a imemorial mãe terra da cultura andina.
Essa concepção metafísica da ontogenia, no sentido aristotélico, é expressa nas imagens simbólicas dos mitos e ritos interligados ao complexo e coerente sistema de valores sociais sacralizados. Pode ter sido sobre esse antecedente, marcados nas memórias-sócio-genéticas, que os homens e as mulheres apreenderam e continuam reproduzindo, geração após geração, muitos valores atados aos ritmos cíclicos da natureza. Esse sistema de valores parece ter interferido no processo de divinização de coisas.
Nesse sentido, o alimento significa muito mais do que a coisa para engolir, representa a comunhão das pessoas com a mãe-terra, produtora do pão e do vinho, que acaba com a fome e gera saúde. Por esse motivo, nas celebrações terapêuticas, estão presentes o pão e o vinho, filhos da mãe-terra, pressupondo a reprodução a partir do arquétipo divino. De modo geral, os ritos, mitos e símbolos religiosos divinizam imagens metafóricas dos alimentos.
Durante centenas de anos, o dia 25 de dezembro representou a comemoração do solstício do inverno, consagrado ao Sol, cuja luz e calor — sinônimo da saúde e da manutenção de vida — começavam a prevalecer sobre a insegurança determinada pelo frio, modificando a mãe-terra, preparando-a para a semeadura.
Essa forte herança pré-cristã, identificando o Sol como fonte de vida e evitando a morte, contribuiu para que entre os primeiros escritos, no cristianismo primitivo, ocorresse certa comparação entre Jesus Cristo e o Sol.
As idéias e crenças religiosas em torno de origens heliostáticas mantêm certas repetições nas estruturas dogmáticas. Uma das mais interessantes é a importância do número doze. Os romanos adoravam doze grandes deuses e cada um deles presidia um mês; os gregos e os egípcios, doze divindades; e os cristãos, doze apóstolos.
Por outro lado, alguns grupos cristãos, e teólogos dos primeiros tempos, entenderam o cristianismo aderido ao culto solar: os maniqueus Cirilo e Teodoro sustentaram que o Sol era o próprio Jesus. São Leão explicou que os mesmos maniqueus aceitavam a alma com a substância calórica do Sol e que, depois da morte, retornaria à origem.
Os primeiros teóricos da cristandade procuravam estabelecer o dia do nascimento de Jesus Cristo. No ano 194 d.C., Clemente de Alexandria propôs o 19 de novembro do ano 3 a.C.; outros pretenderam que o nascimento ocorrera em 30 de maio ou 19 de abril. Enfim, logo perceberam ser impossível assegurar que Jesus nascera nessa ou naquela data.
Por não haver nos Evangelhos referência à data do nascimento de Jesus Cristo, a discussão dos exegetas perdurou mais de três séculos. Somente em 525, Dionísio, o Pequeno, fixou o nascimento de Jesus, no dia 25 de dezembro do ano 754, Aburbe condita (depois da fundação de Roma).
Os cristãos armênios permaneceram resistentes a essa ordem e acusaram de idólatras os teóricos da Igreja, por estarem adorando o solstício do inverno. Na mesma esteira, o parlamento inglês, quase dez séculos depois, em 1644, sob forte influência puritana, proibiu as comemorações do Natal.
Na tradição francesa, é o Bonhomme Noel, o Papai Noel, quem desce do céu trazendo presentes para as crianças boas, enquanto o Père Fouettard deixa os açoites para as más. Em certas culturas, é o próprio menino Jesus quem distribui os presentes; em outras, São Nicolau ou Santa Claus.
A presença da árvore de Natal é mais recente. É possível que tenha aparecido, primeiramente, na Alemanha, no século 19, em alusão à festa do pinheiro de maio, uma variante da do solstício de inverno.
Sem duvidar do valor da análise histórica da comemoração do Natal, interligando a chegada do solstício de inverno às ideias e crenças religiosas, para a maioria esmagadora dos homens, mulheres e crianças, pouco importa se existe algum fato histórico no dia 25 de dezembro: a extraordinária fé em Jesus Cristo continua unindo com júbilo as pessoas em torno de imagens metafóricas da saúde, como mensagem de bem-aventurança.