João Bosco Botelho
O corte separando o antes e o depois, nos saberes da Medicina como Paideia, encontra-se no livro Das Doenças Sagradas, de autor desconhecido, do século 4 a.C.:
Quanto à doença que nós chamamos de sagrada (epilepsia), eis o que ela significa: ela não me parece nem mais divina, nem mais sagrada que as outras; ela tem a mesma natureza que as demais doenças e se origina das mesmas causas que cada uma delas. Os homens atribuíram-lhe uma natureza e uma origem divinas por causa da ignorância e do assombro que ela lhes inspira, pois em nada se assemelha às outras.
Os integrantes da Escola de Cós construíram o maior legado da Medicina como Paideia: a teoria dos Quatro Humores, aqui considerada como primeiro corte epistemológico da Medicina. Na realidade, a proposta teórica uniu elementos reconhecidos da Filosofia e da Medicina. Para cada elemento de Empédocles foi associada uma categoria teórica, capaz de unir com coerência as qualidades da natureza com as do corpo.
A teoria dos Quatro Humores, atribuída a Políbio, está descrita no manuscrito Da Natureza do Homem (Daremberg. Oeuvres Choisies d’Hippocrate. Paris. Labe Éditeur. 1855:
O corpo humano contém sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra, que estes elementos constituem a natureza do corpo e são responsáveis pelas dores que se sentem e pela saúde que se goza. A saúde atinge o seu máximo quando estas coisas estão na devida proporção em relação umas às outras, no que toca à sua composição, força e volume além de estarem devidamente misturadas. A dor surge quando há excesso ou falta de uma destas coisas, ou quando uma delas se isola no corpo em vez de estar misturadas com as outras.
A Medicina como Paideia saltou do domínio casual e ametódico para o método construído em torno da busca da etiologia nos desequilíbrios dos humores. O diagnóstico acompanhava o prognóstico e a terapêutica para identificar o excesso ou da falta do humor desequilibrado. Como consequência, os tratamentos se voltaram para excretar as sobras por meio de vomitórios, sudoreses, diureses, diarreias e sangrias. O prognóstico se materializava na boa ou na ausência de resposta à terapêutica.
A aceitação da teoria dos Quatro Humores por alguns médicos da Escola de Cós, não atenuou os embates com alguns filósofos, em certa medida, defensores da medicina-empírica e da medicina-divina, ambas livres das medidas de mensurações impostas pelo entendimento jônico da natureza.
Esses conflitos aparecem em dois textos:
- O filósofo Heráclito de Éfeso (540-470), de genialidade exclusiva, é contundente na antipatia aos médicos (Os Pré-Socráticos: fragmentos, doxografia e comentários. 2. ed. São Paulo. Abril Cultural. 1978. p. 297: “Os médicos, quando cortam, queimam, e de todo o modo torturam os pacientes, ainda reclamam um salário que não merecem, por efetuarem o mesmo que as doenças”;
- O autor desconhecido de Sobre a Medicina Antiga, do século 4 a.C., testemunha certo conflituoso entre alguns médicos e filósofos, no qual repudiaram de maneira enfática, a generalização de todas as doenças estarem estritamente ligadas somente aos quatro elementos de Empédocles: (DAREMBERG, 1855. Oeuvres Choisies d’Hippocrate. Paris. Labe Éditeur. 1855: “1. Que no caso de um doente afetado por uma alimentação crua e curado por uma alimentação cozida, não é possível dizer o que foi eliminado da direita, se o calor, se o frio, se a umidade ou a secura; 2. Que não existe um quente absoluto que possa ser misturado para curar o frio, uma pessoa tem de tomar água quente ou vinho quente ou lente quente e a água o vinho e o leite tem propriedades diferentes que serão mais eficazes do que o calor”.
Em alguns trechos da mesma obra, Hipócrates também sustenta que o corpo humano é composto por grande número de coisas de naturezas diversas: salinas, amargas, doces, ácidas, adstringentes, insípidas etc.; e não só de quatro componentes. Essa posição hipocrática é intrigante porque, em última análise, pode ser entendida como resistência à teoria dos Quatro Humores do genro Políbio.
De certo modo, a contestação hipocrática traduz o conflito que alcançou outros filósofos para reduzir a saúde e a doença somente aos quatro determinantes da teoria doa Quatro Humores (sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra). É possível que os médicos da Escola Médica de Cós tenham sofrido influência de Alcméon, filósofo e médico de Crotona, no Sul da Itália, que admitia um grande número de forças atuando nos corpos (Thivel, Antoine. Cnide et Cós? Paris. Les Belles Lettres. 1981. p. 289-383). No livro Da Natureza do Homem, atribuído a Políbio, na mesma época, ressalta as idéias de Alcméon (Jouanna, J. Hippocrate et l’École de Cnide. Paris. Les Belles Lettres. 1974 p. 137- 174), o defensor da ideia de a saúde ser dependente do equilíbrio de múltiplas forças dinâmicas e a doença seria o predomínio de uma sobre as outras.
Platão (República 407b-c-d-e) adotou o modelo médico dos tempos homéricos. É possível que essa leitura platônica tenha contribuído para ativar o conflito de competência entre a Medicina, voltada à interpretação da natureza por meio da tékhne, e a religião. Em aparente contraditório, Platão retoma a Medicina como téhkne ao distinguir as diferenças entre as práticas Medicinais entre pobres e ricos. O filósofo critica o modo como os médicos dos escravos correm de um paciente para outro e dão instruções rápidas sem falar com os doentes e os compara com os médicos dos homens livres (Leis 720a-b-c-d-e):
Se um deles ouvisse falar um médico livre a pacientes livres, em termos muito aproximados das conferências científicas, explicando como concebe a origem da doença e elevando-se a natureza de todos os corpos, morreria de rir e diria no que a maioria das pessoas chamadas médicos replica prontamente em tais casos: — O que fazes, néscio, não é curar o teu paciente, mas ensiná-lo como se a tua missão não fosse devolver-lhe a saúde, mas fazer dele médico.
Em certos aspectos, médicos e filósofos estavam de acordo. Tanto Platão (Platon. Oeuvres Complètes. Paris: Ed. Gallimard. Bibliothèque de la Pléiade. 1950. v.1, v.2. Banquete, 186-187) quanto Hipócrates (Darembrg. Oeuvres Choisies d’Hippocrate. Paris: Labe Éditeur. 1855), reconheceram como insofismável a obrigação do médico em esclarecer o doente de todos os aspectos da enfermidade. Aristóteles (Aristote. La Politique. Paris: J.Vrin. 1989. I, 11, 1282) vai mais longe e distingue o médico do homem culto em Medicina, estabelecendo o espaço que cada um pode ocupar nas suas funções específicas.
A relação da medicina-oficial com a natureza que os gregos tão bem assimilaram ao atingir o social, em sistemas de valores e respostas claramente configurados, reforçava-se como Paideia. Nesta perspectiva, foi evocada por Sólon ao descrever os elos entre as doenças pessoais e coletivas com a desorganização social. Baseado nesta relação, esse legislador fundamentou parte do seu pensamento político afirmando que as crises políticas interferiam na qualidade da saúde de uma população.