Amigos do Fingidor

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Um carnaval gigantesco
Jorge Bandeira*


Assisti e me refestelei com a apresentação de Carnaval Rabelais, do grupo TESC, com a direção segura de Márcio Souza e assistência de direção de Márcio Braz. Trata-se de uma ousada e anárquica dramaturgia que contempla o que há de melhor em François Rabelais, este autor “maldito” do Renascimento.

A crueza dos diálogos, a interpretação exagerada e precisa dos intérpretes torna este carnaval um atraente e estimulante jogo de cena do atual Teatro amazonense. Rabelais/TESC não perdoa nem mesmo o dramaturgo, que é inserido nas falas jocosas e corajosas, pois são poucos nesta vertente do Equinócio que dão a cara a bater em assuntos tão delicados como a corrupção nos meios políticos (com nome dado aos bois graúdos) e a oficialidade imposta pela “cultura bovina”, como diz um dos notórios personagens saídos de Rabelais/Márcio Souza.

É um Teatro feito para alegrar, para pensar, para refletir nossa situação aqui e alhures. No palco, tornado “transregional”, eis que aparecem as vicissitudes desta humanidade repleta de aberrações que se tornam ponto comum, onde o gigante Gargantua nasce de forma a recordar uma outra transgressão, desta feita cinematográfica: o momento caótico e absurdo do nascimento de outro anti-herói nas telas brasílicas – Macunaíma, na antológica cena do filme de Joaquim Pedro de Andrade. Porém, trata-se de Teatro, e de um bom e pertinente Teatro, que é elaborado com uma minúcia e técnica, mas que não o deixa “carregado” ou com maneirismos.

O elenco demonstra estar cioso de sua capacidade, de sua responsabilidade para com o espectador, o tempo de respostas, com ínfimos erros de “deixas” teatrais, torna esta trupe teatral de uma envergadura maciça, e entramos pra valer no jogo proposto pela encenação.

A música, com letras de Aldisio Filgueiras, é uma outra delícia, tal qual a glutonaria dos gigantes, da família que em livros posteriores de Rabelais tornar-se-á “pantagruélica.” Das “toadas escrachadas” aos rompantes de um metal jazzístico, das marchinhas insinuantes e calculadamente delinquentes, politicamente incorretas (que bom escrever isso!) tem-se a impressão que o carnaval engoliu o rock, ou blues, seja lá o que os nossos ouvidos escutam.

Tudo dentro de um caos construtivo e anárquico, onde os palavrões proliferam nas bocas das personagens e curiosamente vão adentrando naturalmente no espetáculo, como se aquelas criaturas cênicas imprimissem um selo, um estigma, no confortável ouvido do espectador. Não é um insulto, é uma necessidade objetiva, e os intérpretes o fazem tão bem que se torna uma língua “rabelaisiana”, condição básica para o entendimento desta estética transgressora do autor e do adaptador.

Grandes cenas são apresentadas, o Bar Renascentista acomoda os músicos no andar superior, feito um “deus ex machina” que abusa da sonoridade para tornar a vida mais palatável, a comilança e o sexo um prazer epicurista, enfim, estamos defronte a uma obra de arte verdadeira, protagonizada por atores, atrizes e músicos que se materializam em seres convergentes para que a obra apareça em toda a sua grandiosa estética e linguagem teatral.

Os figurinos lembram contos de fadas grotescos e bufões medievais, fazendo ecos ao teor inovador da escrita de François Rabelais, e de quanto foi inovadora sua contribuição ao mundo da literatura. O teatro feito pelo TESC atinge neste espetáculo uma segurança inquestionável, de elenco e dramaturgia que “regurgita” de forma precisa as contradições deste universo amazônico, inclusive suas neuroses culturais.

O personagem Rabelais costura as cenas com suas engraçadas e absurdas histórias, num jorro de situações que estimulam nossos sentidos, e aqui se inclui o paladar, com as extravagantes culinárias dos gigantes, sempre ávidos em tudo comerem, incluindo a si mesmos! A costura cênica de Márcio Souza é precisa, criteriosa e não força a barra ao fazer o gigante anárquico Gargantua chegar, da França, nesta “Paris dos Trópicos”, a história ganha seu túnel do tempo inserida num contexto histórico que abraça e envolve a França e o Brasil, dentro da ótica do “delírio do látex”, aliás, o tempo é uma convenção desrespeitada criteriosamente dentro desta dramaturgia e encenação exemplar, moderna.

Das grandes “sacadas” da adaptação, temos os saborosos recortes cênicos dos hippies, e aqui destaco que a citação de Theleme nos remete, por tabela, aos esotéricos da estirpe de um Aleister Crowley, personagem tão importante para a contracultura que está retratado em capa de disco dos The Beatles (Sgt. Pepper, de 1967, auge do movimento hippie e da psicodelia), e que emenda as referências dentro deste caos ordenado, ao de Bruxo que parodia um certo “Mago” da Academia Brasileira de Letras, que também transitou por esta literatura hermética nos anos 70, quando era parceiro de um certo Raul Seixas (aquele é imortal e continua fazendo vento, ahahahahah) e a sequência impagável da guerra perpetrada pelo Rei Picrochole, onde a imagem fálica da arma diz tudo: agora estamos fudidos! Ahahahahah.

Grande ator este Robson Ney Costa, de uma entrega total ao seu personagem insano, demente, cruel e fanático. Vale recordar também que estes gigantes da cena não amenizam em nenhum momento, eles não querem um consentimento, a eles interessa a transgressão e a reflexão da cena, do texto, da palavra. A eles importa o seu riso franco e verdadeiro. O aplauso justo e sincero. A vaia é bem-vinda, desde que verdadeira.

A verdade deste espetáculo, o rigor com que foi conduzido, é um momento que não poder ser perdido aos que transitam pelo Teatro feito na terra de Ajuricaba, aos que se interessam por um Teatro que usa a crítica e a existência humana na dose exata da perpetuação dos sentidos, da memória. Sem ser redundante, um espetáculo memorável. Uma boa cagada a todos vocês. Já ia esquecendo, obrigado ao Lázaro. Fui.


(*) Jorge Bandeira é historiador de formação e tradutor por compulsão.