Amigos do Fingidor

domingo, 20 de dezembro de 2009

Sobre a matemática de Borboleta
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(conto infantil)

Allison Leão

II


Antônio não tinha ficado amigo do Felipe de Oliveira Borboleta por causa da genialidade que este demonstrava ter na tabuada. Havia sido por pena de sua triste figura. Isso não tornava Antônio muito nobre, é claro, mas ele já havia se esquecido dos motivos que o levaram a se aproximar de Felipe de Oliveira Borboleta, porque agora o que importava era que tinha dado muita sorte em ser amigo daquele menino desengonçado. Os demais colegas já tinham percebido o valor de ser amigo de Felipe de Oliveira Borboleta, mas a esta altura ele não se deixava entregar a outra amizade senão à de Antônio. Às vezes aceitava um ou outro pastel de alguém, mas, na hora da tabuada, só aliviava a barra do amigo. Eram antes dois enjeitados ou, na melhor das hipóteses, dois pedaços de nada que faziam companhia um ao outro – um, por não ter nada que chamasse atenção, outro, pela aparência deprimente –, mas agora eram distintos. Na verdade, Antônio não havia feito grandes coisas, permanecia com sua mentalidade mediana: às vezes acertava uma ou outra pergunta na tabuada; muitas vezes errava. Mas eram as mesmas que todos – exceto o Felipe de Oliveira Borboleta – erravam. À sombra de seu amigo Antônio se apontava: o amigo do garoto mais inteligente da 5a série.

De vez em quando, alguém vinha pedir a Antônio que intercedesse junto ao Felipe de Oliveira Borboleta para que ele maneirasse nesta ou naquela mão. Antônio dizia que estudaria o caso, faria lá seu tráfico de influência. Mas nunca chegava a pedir por ninguém. Que se danassem! Qualquer coisa, depois da sabatina, dizia para o suplicante que não se aborrecesse com o Felipe de Oliveira Borboleta, pois ele era muito aplicado na tarefa de dar bolos. Aqueles foram os melhores dias da vida escolar de Antônio Douglas.

Certa semana, a professora, querendo variar, passou a casa de 2. A maldita casa de 2! A turma respirou aliviada porque seria uma semana sem esquentar as mãos com os bolos de Felipe de Oliveira Borboleta, pois todos consideravam moleza a casa de 2. Mas Antônio Douglas tinha seus problemas. Como de costume, Felipe de Oliveira Borboleta estava sentado atrás do amigo, e justo para este calhou: 2+2? Cinco, disse, como sempre hipnotizado por aqueles números tão fáceis de se resolverem. Incrédula, ela repetiu a pergunta, e ela nunca repetia, 2+2? Cinco, ele reafirmou. Antônio Douglas sabia que não devia dizer isso, mas não conseguia evitar. A questão passou ao amigo. O alívio, depois do vexame de errar essa simples pergunta, foi saber que era Felipe de Oliveira Borboleta quem o “castigaria”. Por isso, deixou a mão mole, à mercê da displicência, como sempre.

Talvez por estar tão entregue e desprevenido o choque lhe tenha sido tão grande. Antônio Douglas chorou pela dor na mão, porém muito mais pelo susto e pela confusão na sua cabeça. Não era para ser de brincadeira? Ele costumava ouvir aquele tremendo estalo vindo de mãos alheias – não sabia o que era ouvi-lo e sentir dor ao mesmo tempo. A professora continuou a sabatina e Antônio Douglas permaneceu olhando para o efeito do bolo: a mão inchando lentamente, avermelhado-se e conservando pequenas pintas claras, talvez dos furinhos que havia na palmatória. Requinte didático.

Antônio Douglas não olhou para trás. Estava confuso. Mas também estava furioso com o Felipe de Oliveira Borboleta. Quando acabou a aula, deixou-se retardar. Voltou sozinho para casa, segurando com uma das mãos a outra machucada, como se carregasse um passarinho morto.

Nas semanas seguintes não se falaram. Antônio Douglas andava pelos cantos. Sua imagem havia desmoronado, sua influência estava irremediavelmente perdida na turma. Agora ele era só aquele que um dia foi. Mas o Felipe de Oliveira Borboleta estava bem. Havia se enturmado com os garotos populares. Andava de afagos com o William, o Jackson, o Jean e o Kevin. E, pelo visto, esquecera-se daquela grande amizade.

Nos dias de tabuada Antônio Douglas passou a faltar aula. Saía de casa, mas embromava pelas ruas até a hora de voltar. Nos outros dias era aquele Antônio, menininho de 9 anos, do primeiro dia de aula, pois o Felipe de Oliveira Borboleta tinha contado a todos o seu segredo. Certa vez, não agüentando mais tanta rejeição, Antônio foi procurar o japonês. Perguntou-lhe se podia socar sua barriga. Shito Kano ficou feliz, porque ninguém nunca mais havia feito isso, os colegas tinham se cansado, e agora Antônio, que nunca havia se interessado por aquela prática, o solicitava. Antônio bateu muito naquela couraça e, aliviado, agradeceu. O japonês, em nada alterado, disse que não fora nada, estava mesmo sem treino. Shito aproveitou para fazer um reparo: não era japonês, era neto de índios. Seu nome derivava da conjunção do analfabetismo dos pais com a desatenção ou a surdez de algum tabelião. Shito Kano deveria ter sido Chico Tucano – assim mesmo, e não Francisco. Mas sua infelicidade onomástica não interessava a Antônio, que apenas quis saber se poderia socar-lhe a barriga mais vezes. Chico disse que não tinha problema, Antônio batia muito fraco.

Num dos dias em que se ausentava da escola, quando já voltava para casa, Antônio cruzou, numa rua pouco movimentada, com seu antigo amigo, que vinha acompanhado de novas amizades. Enquanto o William, o Jackson, o Jean e o Kevin cercavam Antônio, na forma de um quadrado hostil, Felipe de Oliveira Borboleta pôs-se no centro dessa formação, perante o ex-amigo. Já que Antônio não havia ido pra aula, Felipe de Oliveira Borboleta faria sabatina ali mesmo. Perguntou quanto eram 2+2. Cinco, Antônio respondeu em cima. Nisto, Felipe de Oliveira Borboleta pediu a um dos garotos que lhe fizesse a mesma pergunta, ao que obviamente respondeu 4. Os outros então seguraram Antônio e o antigo amigo passou a lhe socar a barriga, que infelizmente não era tão preparada quanto a de Chico Tucano. Felipe de Oliveira Borboleta repetia a pergunta, 2+2? 2+2? 2+2? 2+2? E Antônio, sempre absorto pelos fascinantes números, cinco! cinco! cinco! cinco! E cada vez que falava era um soco na barriga. Felipe de Oliveira Borboleta disse para Antônio fazer-lhe a mesma pergunta. Ele fez. E o outro, como era de se esperar, sempre dava a resposta correta, desesperadoramente correta. Como podem ser cinco? – Felipe de Oliveira Borboleta perguntou a Antônio – é impossível! Diz que são 4! diz!, berrou. Os garotos que seguravam Antônio passaram a achar aquilo muito estranho e o soltaram devagar, indo depois embora. Felipe de Oliveira Borboleta estava no chão, de cara no asfalto. Implorava para que Antônio lhe ensinasse a pensar como 2+2 podem ser cinco.

Ficou lá chorando e suplicando. Não chegou a ver o antigo amigo se afastando – devagar e ainda com a barriga dolorida – da sua triste presença.