Amigos do Fingidor

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

À deriva, na varanda, e o perau do pensamento
Zemaria Pinto*

Parece que foi anteontem, mas já se vão 13 anos desde A Cor da Palavra Primária, a última “provocação” poética de Arnaldo Garcez, que viria formar, ao lado de Com Sabor de X e Y, O Lado Vermelho do Azul e O Ai do Samurai um intrigante quarteto poético, como um berro calado contra a mesmice e a mediocridade que insistem em se autoclassificar como poesia.

Buscando a síntese, podemos afirmar que a poesia de Garcez vai das experiências verbivocovisuais – seja lá o que isso for – das vanguardas primitivas, em Sabor, até o mais desassombrado lirismo de A Cor: “Como é simples / ver a luz / sem medir / sua intensidade / quando só / se deseja / viver em / liberdade”. E neste Varanda do Pensamento, o que nos aguarda?

Nesse lapso de tempo, Garcez firmou-se como artista plástico, mas não deixou de registrar suas inquietações existenciais também na poesia. Integrante de uma geração que se intitulou “marginal”, ele jamais aceitou o rótulo: independente, sim; por isso mesmo, à margem das obviedades globalizantes, porém construindo um trabalho sólido, que não se entrega, e amadurece a cada passo: “o poeta / não tem mais ilusão / sabe / que toda manhã / nasce da escuridão”.

A palavra, suspensa no ar, não precisa do suporte do quadro: ela é em si mesma. O poema, entretanto, precisa, para eternizar-se, do suporte do livro – ou, melhor, de uma mídia, que pode, nestes tempos virtuais e pouco virtuosos, ser, inclusive, o livro – brinquedo de papel, pedacinho colorido de saudade. Assim nasce esta coleção de 60 poemas, como 60 gritos desferidos contra o monocórdio barulho da madrugada. Da mesma forma como o artista plástico é temático, compondo a cada exposição uma sequência de quadros que reinventam, expressivamente, o real, o poeta transcende a lírica amorosa e amplia o espectro da sua poesia para além do mero diálogo de uma só voz: são poemas reflexivos, onde o elemento existencial não se afasta do banal cotidiano, representado pelo sexo e pelos encontros/desencontros amorosos que o transsubstanciam. Puro rock’n’roll.

É interessante notar o uso recorrente de algumas palavras, tatuando o discurso poético de Varanda: entre as 12 mais usadas, temos um empate entre conotação positiva e conotação negativa. Esse equilíbrio, entretanto, é apenas aparente. Vejamos: vida, verdade, destino, amor, sentido, razão – palavras positivas; vazio, desejo, solidão, silêncio, dor, escuridão – palavras negativas. Ocorre que “destino” é uma palavra que, em determinados contextos, assume conotação negativa – estão aí as tragédias gregas que não me deixam mentir. A palavra “sentido”, por seu turno, faz parceria com “razão”, e pairam, ambas, sobre os dois grupos, oscilando, ora para um ora para outro. Classifico a palavra “desejo” como negativa pensando em Nietzsche e em Schopenhauer, sem qualquer inflexão de caráter piedoso. Assim, a preponderância é negativa, sobrando ao lado apolíneo as insípidas, apoéticas e manjadíssimas “verdade”, “vida” e “amor”, tributárias da lírica água-com-açúcar, com a qual Garcez jamais fez acordo: “o que vive / dentro de mim / está solto / na varanda do pensamento”.

No embate entre as palavras, entretanto, não é a polaridade que deve ser discutida, mas o efeito que elas causam sobre o leitor. Consciente disso, Garcez desafia-o a mergulhar nos poemas, como num mar improvável, onde os símbolos, à deriva ou no perau, estão sempre à espera de seu Édipo, seu Jung, seu Lévi-Strauss ou mesmo seu Indiana Jones: “deixo tudo solto / na paisagem / dos olhos / do pássaro / que voa dentro de mim”. Arqueologias da mente.

*Apresentação do livro Varanda do pensamento,
de Arnaldo Garcez, lançado no último dia 26 de agosto.