Amigos do Fingidor

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Quando declina o dia
Inácio Oliveira


A cidade estava entardecida, as luzes em fotoelétrico foram se acendendo devagar, como um dia artificial que surge dentro da noite que cai. Há muitos anos, sim, que não se viam; agora ali, um diante do outro naquela mesa de bar. O silêncio de quando se viram pela primeira vez os paralisava agora, novamente.

Os anos haviam emprestado a eles uma espécie de calma e sabedoria que só mesmo o tempo é capaz de dar. Talvez ele tivesse sofrido. Só mesmo um homem que tivesse sofrido o suficiente teria aquela humildade nos pequenos gestos de arrastar uma cadeira para que ela sentasse, uma mulher que já havia dividido sua cama, sua vida e por pouco não o destruíra.

Em algum momento da vida eles haviam cometido um erro terrível e o resultado era esse, muitos anos depois: um bar à deriva no fim da tarde. Lembravam-se de quando se conheceram. Dezessete anos, ele. Ela, menos. Um dia ele ira olhar para ela e sentir apenas ódio, um tipo de ódio que só se sente mesmo por alguém que já se amou um dia. Mas como saber disso ali naquele preciso momento em que o frágil equilíbrio da vida deles se desatava.

Agora o tempo havia posto um sossego em todas as coisas e enquanto iam pensando essas coisas enormes, o mundo, devagar, ia girando ao redor deles. Eles não queriam mais lembrar de nada, lembranças eram uma espécie de traição, traição do momento presente.

O único motivo pelo qual estavam ali é que estavam se reencontrado no tempo. Quantas voltas foram necessárias que o mundo desse para que este momento fosse possível, e agora o que fazer com ele? O que dizer? O que pensar? Eles diziam coisas que não pensavam, pensavam coisas que não diziam. O que havia então com as palavras? O que elas escondiam? Do que elas os livravam? Ambos ali naquela mesa de bar eram qualquer coisa como uma fotografia ou uma pintura que houvesse captado algo que as palavras jamais poderiam expressar.

Acertar as contas com o passado era uma idéia meio ridícula, pois não havia nada mais irremediável que o passado, antes era uma aceitação maior de tudo. Ele quisera tanto ter sido um homem bom, como agora o era, no entanto quando a experiência vem aí ela quase já não serve mais.

Enquanto ela falava, ele ia catando as palavras no ar, formando frases estranhas que só mais tarde, quando estivesse sozinho, entenderia. Toda possibilidade de comunicação estava esgotada em algumas poucas palavras e pequenos gestos. Percebeu que ela falava de sonhos, essa palavra que não tinha um significado preciso e que as pessoas gostavam tanto de usar, mas eram sonhos desfeitos, estragados pelo tempo como fruta que se tardou em colhê-la. A gente morre quando deixa de sonhar, ela dissera.

Deu vontade de contar para ela que dos muitos lugares por onde andara havia em Amsterdã uma prostituta que ele pagava por se parecer demais com ela; às vezes eles iam para o quarto e ele pedia que ela ficasse quieta na cama enquanto ele do divã olhava para ela, olhava daquela forma que se olha para lembrar depois. Quando isso acontecia, ela cobrava mais caro e ele pagava sem reclamar, mas dizer isso assim para ela parecia uma coisa absurda e sem sentido, a mulher que ela um dia fora havia se perdido em algum momento em que ele estivara ausente.

O tempo e a vida haviam machucado ela de tal forma que de seus cabelos pendia um leve tom de prata, seus lábios eram tristes, não beijáveis, ela nem tivera tempo de envelhecer, seus olhos ainda eram jovens, embora em seu corpo se notasse o lento e imperdoável esvanescer do tempo. Por um momento ele quis esquecer que um dia já havia amado aquela mulher.

Por que voltar agora depois de tanto tempo, ela perguntava.

Todo homem ao menos uma vez na vida devia sair do lugar de onde nasceu só para um dia poder voltar. Era bom voltar para onde se é esperado, talvez, e apesar de tudo, ela ainda o esperasse. O tempo perdoa tudo, cicatriza tudo e a tudo esquece. Mas não era isso, era a doença agora. O médico em Munique sentenciara, três anos no máximo, um tumor inoperável na cabeça. Ele perdia lentamente a visão, tinha convulsões, delírios – e no meio disso tudo ele às vezes chamava o nome dela, mas ninguém o ouvia no apartamento vazio. O que é o sofrimento de um homem quando ninguém pode escutá-lo?

Ele queria voltar para morrer em casa, os parentes todos mortos, amigos não tinha, mas havia ela, talvez ainda o esperasse. Talvez estivesse casada? Esquecido dele? Não, improvável. Durante aqueles anos todos ela fora apenas uma lembrança, mas inundava toda a vida dele.

Nos dias que se seguiram à partida dele ela desejou esquecer aquele homem, no entanto ela sentia sempre uma falta de não saber exatamente o quê e no fundo ela sempre o estivera esperando. A coisa mais triste do mundo é uma mulher esperando seu homem, mesmo que ela não saiba disso. Ela casou, teve filhos, separou-se. Gastou seus melhores momentos esperando por algo que ela não entendia direito.

Refeitos do choque de estarem ali, eles pareciam dar-se as mãos como quem diz atravessaremos juntos essa várzea. Eles tinham a paz dos que muito sofreram, uma paz que talvez não desejassem, mas que enfim se chamava paz.