Os signos da modernidade na Suíte para os habitantes da noite
Zemaria Pinto*
Capa de Suíte para os habitantes da noite, de
Anibal Beça (13/09/1946-25/08/2009)
Não, senhores, a Poesia não está em crise: a Poesia é crise. Por consubstanciar-se na própria aventura da linguagem, a Poesia é uma constante de questionamento, busca e mutação, renovando-se a partir de si mesma e do contágio com as outras artes e com o cotidiano. Entretanto, se analisarmos sua história desde os antigos até o Romantismo, veremos uma distância muito grande entre o comportamento e a consciência desse comportamento. Os poetas que alicerçaram a Poesia enquanto arte valeram-se de recursos técnicos que permitem sua sobrevida através dos séculos. Mas é o poeta moderno que equaciona esse problema em limites palpáveis: de Baudelaire aos Campos, de Laforgue a Bandeira, o poeta moderno tem pensado sua poesia com o estofo da intemporalidade e da universalidade. Muda a forma, mudam-se as escolas, mas ela mantém-se fiel à sua tradição histórica, num trabalho de resgate permanente do estabelecido, com o qual se engendrará o novo.
E eis que se instala o paradoxo: o novo criado a partir da tradição, e não como resultante de um conflito entre esta e aquele. É aqui, então, que se instaura a crise. João Alexandre Barbosa, no ensaio As ilusões da modernidade, afirma que, para o poeta moderno, “a tradição que interessa é aquela que, traduzida, implica no desbravamento de novas possibilidades de utilização da linguagem da Poesia”. O poeta fundará, portanto, sua modernidade no caráter atemporal e universal de seu trabalho, e numa terceira ilusão: a da ubiquidade, ou seja, ser de todas as épocas e de todos os lugares, rompendo a linearidade tempo/espaço, ou melhor, fragmentando-a a partir da leitura dos intertextos que compõem o poema.
O poeta moderno é, pois, um criador de enigmas. A distância entre o leitor e o poeta pode ser medida pela tensão que este consegue ao ignorar os signos da linguagem estabelecida, que resultariam num discurso lógico, multiplicando significados, multifacetando a leitura. Aqui, faz-se útil o exercício da crítica, mais que em qualquer outra atividade artística. Um romance pode prender seu leitor pela boa trama. Um quadro pode encantar pela carga emocional que transmite. Uma sinfonia ou uma simples canção serão agradáveis ao ouvido, prescindindo de um socorro crítico. Mas a crítica do poema arquiteta uma ponte entre o poeta e o leitor, fornecendo a este algumas possibilidades de leituras, independentes do impacto causado pela musicalidade e pelas imagens que o poema transmite numa leitura acrítica. T. S. Eliot, no ensaio As fronteiras da crítica, afirma que “o crítico é um crítico (de poesia) se o seu objetivo primordial, ao escrever crítica, for o de ajudar seus leitores a compreender e a sentir prazer”. A ele cabe, portanto, desvendar o que Pound classificou como “a dança do intelecto entre as palavras”, ou a essência mesma da Poesia.
Essas reflexões vêm-me, um tanto desencontradas, a propósito da leitura de Suíte para os habitantes da noite, de Anibal Beça, vencedor do 6° Prêmio Nestlé de Literatura Brasileira, categoria Poesia, em 1994. Anibal é o poeta moderno por excelência, a partir do momento em que elege a linguagem como o referencial de seu fazer poético. Já fora assim em Filhos da Várzea, também em Itinerário Poético, livros anteriores. Esta Suíte traz um poeta mais amadurecido, não apenas pelo inevitável passar do tempo, o que em alguns escritores traduz-se por repetição ou enfado, mas por guardar no cerne da sua elaboração poética uma força renovada, que transforma a linguagem, de objeto, em sujeito do poema.
O crítico situado nesta insípida pós-modernidade, que não se submete às saturações impostas por modismos acadêmicos, com suas vertentes que transitam da antropologia à psicologia, passando por “gias” e “ismos” inimagináveis, tem dificuldade de enquadrar o analisado em escolas, o que facilitaria sobremaneira o esclarecimento didático. Como não vivemos no centro de nenhuma revolução estética, e o estilo de nossa época só será definido daqui a algumas décadas, vou arriscar nestes comentários, apenas para efeito de melhor entendimento, classificar o poeta Anibal Beça em uma escola ou estilo consagrado. É um risco consciente, mas é uma tentativa de casar uma crítica que se pretende atual com a tradição literária que embasa a própria criação do autor.
Temos na Suíte as mais diversas formas poéticas: da ode ao soneto, da balada ao auto, resgatados da tradição, até ousadias formais historicamente recentes, como o poema concreto e o poema-práxis, além do poema livre das amarras rítmicas, cuja musicalidade se constrói a partir da interação entre autor e leitor. Ao lado da elaboração formal múltipla e inquieta, nota-se a preocupação com o enriquecimento da linguagem, a partir do uso de palavras exiladas do coloquial, bem como a criação de inúmeros neologismos. Leitor de Dante, Camões e Pessoa, fato evidenciado no texto, Anibal sabe que o poeta é o guardião da língua. Outra característica facilmente observável na Suíte é a dicotomia em que ela se alicerça: noite-dia, loucura-razão, sem que se estabeleça uma predominância de valor, antes, procurando o equilíbrio. Esse embate constante se trava também, sem que o poeta tome partido, na tensão entre fé mística e erotismo, urbano e bucólico, paixão e humor, apolíneo e dionisíaco, onde os contrários não se negam: se completam, se complementam como parte de uma estética una. Por fim, a definição de Dámaso Alonso, acerca da poética de Góngora – “intensa no pormenor, densa no conjunto” –, enquadra-se à perfeição na poesia de Anibal Beça. Despido dos vícios que distinguem o Barroco, o poeta toma para si o que há de positivo naquela escola, reinventando a tradição e inserindo-se em seu tempo, num movimento circular de intemporalidade,
Uma outra evidência do caráter intencionalmente neobarroco da Suíte para os habitantes da noite é o empréstimo que ela faz à música para intitular seus “movimentos”. Enquanto forma musical, a suíte foi estabelecida no século XVII, reunindo os ritmos de dança então em voga (sarabanda, giga, alemanda, entre outros), caracterizando-se como uma sucessão de peças de caráter contrastante, porém escritas numa mesma tonalidade. Tendo o barroco Johann Sebastian Bach, na primeira metade do século XVIII, como seu mais notável criador, a suíte, com o passar do tempo, perdeu sua característica dançante, passando a designar trechos sinfônicos representativos de óperas, balés ou música incidental para teatro. É, pois, com o sentido original que Anibal Beça designa a Suíte.
A tradição lírica brasileira não guarda muita afinidade com os poemas de longo fôlego, tanto que classifica Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima, como poema épico, querendo livrar-se, talvez, do estigma de não termos um “poema nacional”. A nossa lírica dá preferência à poesia confessional, à Bandeira, ou questionadora do mundo, das invenções de Drummond, mas (quase) sempre de maneira fragmentada, sem um fio condutor. Anibal não fugiu à regra, negando-a: a Suíte é composta de poemas que podem ser lidos, e entendidos, independentes entre si, porém há uma guia, a mão do poeta-condutor, que atravessa todo o poema, desde o “Prólogo” – e assim me assino esse uno e esse outro Majnun – até a “Balada como/vida”, com sua coda em pianíssimo, figurando o transitório da vida, até então cantada em outros tons – altos e bons.
Tendo como ponto de partida a tradição persa, através da desventura do poeta Majnun, que enlouqueceu por amor a Laila, despojando-se de suas riquezas para viver no deserto, a Suíte traça um movimento sinuoso até um provável presente amazônico e aqui se universaliza:
Um rio negro lava minha aldeia
leva meu silêncio
Os elementos do poema, entretanto, são refratários a qualquer análise de cunho sociológico. Não espere o leitor encontrar em Anibal Beça, e em especial nesta Suíte, uma atitude linear e franca: somos conduzidos por labirintos habitados por animais tão domésticos, como o gato, o galo, ou mesmo “éguas mouras”, para, num repente, confrontarmo-nos com “um tigre de basalto” ou com
Os lobos sempre esses lobos
assaltantes da memória
recorrências de mim mesmo
ou de um outro que me habita
Mas o poeta que nos conduz (Majnun? Anibal?) não esquece das “musas reclusas musas” ou da “mulher de um sonho distante”, a própria Noite-Laila, o inconsciente, a desrazão, a fúria criadora do Louco-Majnun, que, enquanto poeta, representa o limite da palavra, palavra que se multiplica em lua (luaura, lualcoólica, lualém, luasente, luamante) ou noite (noitensa, noitelúrica, noitestelar, noitemporal, noiterminal). “Onde a Poesia?”, o poeta se pergunta: num auto-novena, no verbo em desconstrução, na contramão do silêncio, ou na solidão do Poema?
A trajetória que a Suíte percorre, do extremo Oriente às barrancas do Amazonas, enveredando por esse tempo milenar e atual, é uma clarividência de seu caráter de obra permanente, não fosse pelo rigor estético de sua elaboração a partir de sutis intertextos, que o leitor descobrirá ao sabor da leitura-viagem (via linguagem), e que funcionam como fachos a alumiar a caminhada na noite escura do poemenigma.
*Posfácio do livro Suíte Para Os Habitantes da Noite, de Anibal Beça, editado pela Paz e Terra, em 1995 – vencedor do 6º Prêmio Nestlé de Literatura brasileira.